Se o Estado pretende proteger vidas, que use o nosso acumulado de inteligência e desista do espetáculo. Que mire os fluxos de dinheiro, as aduanas, os depósitos, os escritórios, as mesas onde se decide quem lucra com o pavor dos inocentes e o choro das mães. Que devolva a rua às crianças com escola, biblioteca, praça e cinema. Que troque caveirão por um contrato pela juventude, fuzil por política pública, pavor por presença.
Porque quem move a máquina de moer vidas segue a lógica da arquitetura racializada do medo, segundo a qual “a morte do outro não é simplesmente a minha vida, na medida em que seria minha segurança pessoal; a morte do outro, a morte da raça ruim, da raça inferior (ou do degenerado ou do anormal), é o que vai deixar a vida em geral mais sadia; mais sadia e mais pura”.

Eu me prometi que não seria mais nosso coveiro. Anos de pesquisa, laudos técnicos e projetos culturais para pôr conhecimento a serviço da periferia e dos povos tradicionais. Prometi não falar apenas da nossa morte, mas a cidade insiste em sangrar. O sangue mancha a cidade, mancha a favela, mancha as aldeias, mancha também os quilombos. A ferida colonial permanece aberta, como disse Grada. O crime que corrói as comunidades nasce da desigualdade histórica; não se desfaz com a operação de vitrine.
Empilham-se corpos, e alguém chama isso de saúde do corpo social. Não reduz a criminalidade; é proposital. Produz conforto e voto$$$. O que reduz a morte é presença concreta e contínua: educação de qualidade, arte, lazer, trabalho digno, políticas públicas persistentes. Quando o Estado chega ceifando, ceifa também a vida do morador; crianças crescem embaladas pelo estampido até que a guerra pareça normal.
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Estamos cansadas!
Há décadas, denunciamos o hiperencarceramento e o genocídio da juventude. Olhem a cor dos corpos no chão e quem habita as favelas. Não se trata de negar o combate ao crime, mas de mirar os verdadeiros mandantes. A máquina que irriga o morro com armas e medo opera em outros endereços. Estratégia que segue o dinheiro desmonta engrenagens; espetáculo só fabrica luto.
O fato é: deveríamos seguir o dinheiro, mapear cadeias logísticas e patrimoniais, atingir a lavagem e a blindagem de quem lucra com o terror dos inocentes. Estratégia, não espetáculo. Mandantes, não bodes expiatórios. Mandantes, não moradores.
Ontem, quarta-feira (29/10/2025), matamos mais gente que o último ataque de Israel em Gaza. E alguém ainda sorri com tudo isso.
*Texto publicado originalmente no Instagram de Jade Lôbo
Foto de capa: Tomaz Silva/Agência Brasil.
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É pesquisadora, ativista e escritora baiana do povo Tupinambá. É também Doutoranda em Antropologia Social pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) e Certificada pelo Afro-Latin American Research Institute at Harvard University, atua nos campos das relações étnico-raciais, cosmopolíticas afroindígenas e direitos dos povos tradicionais. É autora de “Para Além da Imigração Haitiana”, criadora da Revista Odù, pesquisadora associada à ABPN e ao Núcleo de Estudos Afro-Latino-Americanos (UNILA).




