“Posso te fazer uma última pergunta antes de ir embora?”, resolvi falar antes que eu esquecesse novamente (já havia pensado em perguntar antes). Estava me despedindo de um amigo após um jantar maravilhoso, repleto de troca, conversa e reflexões. Ele disse que eu podia perguntar e claro que eu o fiz: “Quando você bateu o olho em mim pela primeira vez, você me achou negra?”. “Mas é claro que eu achei você negra, Larissa!”. Fiquei feliz com a resposta, mas confesso que esperava ouvir o contrário do meu amigo negro retinto, filho de pai africano. E por que eu estou escrevendo esse artigo? Bem, vamos entender em breve…
Sou uma mulher negra, cearense, nordestina, brasileira. Inicialmente, posta como “parda” na certidão de nascimento e nos formulários. Eu, uma mulher negra light skin/brown skin. Sim, pele clara. E que culpa tenho eu? É claro que eu vou colocar culpa no colonizador e no que ele plantou na “formação” do Brasil! Nessa miscigenação desgraçada! Então, como a maioria das famílias brasileiras, a minha família é misturada/miscigenada.
Há pessoas brancas, negras e indígenas na minha família. Mas meus pais não são considerados brancos nem indígenas. São pessoas negras, de pele clara, assim como eu. E meus avós? A avó materna é negra retinta, do cabelo liso. O meu avô materno era negro de pele clara, cabelo crespo e traços bem negroides. A minha avó paterna provavelmente é negra de pele clara ou parda (?). Essa parte fica difícil ter certeza, pois eu não lembro no momento em que escrevo esse texto agora se seus pais eram brancos ou negros. O que visualizo até hoje é uma mulher de pele clara com traços negroides (cabelo crespo, nariz grosso, lábios carnudos). Ah, e meu avô paterno era negro retinto, de cabelo crespo/cacheado. Esse membro da minha família é um dos mais importantes pra mim.
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Sobre esse último, eu guardo o que me diziam sobre o passado e a ancestralidade dele. Meu avô paterno tinha parentes africanos. Minha descendência vem de África, a parte mais importante (e que eu me identifico – é importante ressaltar). Digo isso porque sei que a maioria dos brasileiros carregam sangue de brancos, negros e indígenas. E por vezes, amarelos também (asiáticos – o que não é o meu caso). E só não sabemos mais a fundo sobre a ancestralidade africana da minha família porque documentos foram queimados. E meu avô perdeu os seus pais antes dos 10 anos de idade. Parte da nossa memória familiar se perdeu. E me dói imensa e indescritivelmente não saber mais a fundo sobre meus ancestrais. Como dói. E muito.
Pois bem. Uma vez o professor de História, Hilário Ferreira, me disse que os negros africanos que vieram para o Ceará eram de Angola e do Congo. Entre as outras línguas africanas dos dois territórios, falavam português e francês (idiomas dos colonizadores). E apesar disso e de outros fatores, de vez em quando, algum(a) desgraçado(a) tem a infeliz atitude de dizer que eu sou branca ou coisa parecida. Quanta violência! Já recebi esse tipos de apontamentos de pessoas negras baianas, cariocas e africanas (que são retintas). Ok, meus amigos, colegas e conhecidos, eu gostaria de ser negra retinta como vocês, mas a culpa disso não é minha, hein…
E posso dizer com segurança e sem pestanejar que… enquanto mulher preta de pele clara, com todos os meus atravessamentos, é violento demais ser apontada como se eu fosse uma mulher “branca” ou “não-negra”. O quanto de violência cabe dentro desse tipo de vivência que várias vezes eu vivi (e tive que engolir), eu não sei descrever. E nem vou, pois não preciso provar nada pra ninguém! Não mais.
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No entanto, quero dizer que entendo que os atravessamentos de uma mulher negra light skin são bem distintos de uma mulher negra retinta. Isso é óbvio! Eu não tenho como dizer ou descrever o sentimento de uma mulher negra retinta. Em diversas conversas e lugares, já fui taxada de parda, morena, moreninha, mulata, coloured […]. Vários termos com seus significados por aí, menos negra. Mulher preta de pele clara. É importante pontuar que eu sou uma mulher negra. Porque é isso o que eu me identifico e sou! E por isso, tenho meus atravessamentos em minhas vivências. Eu tenho minhas dores, minhas marcas e meus traumas fudidos.
Se eu fosse uma mulher branca, eu não teria tido meu cabelo discriminado no meu tempo de colégio na infância… Se eu fosse uma mulher branca, não teria sido preterida na adolescência e no início da vida adulta… Se eu fosse uma mulher branca, não teria tido vários mal-estar durante o tempo de faculdade… Se eu fosse uma mulher branca, não teria sido desrespeitada e “odiada de graça” por algumas pessoas no meu primeiro emprego CLT em um cargo de chefia e liderança. Se eu fosse uma mulher branca, eu não teria sido… bom, aqui quero encerrar. Não ficarei o tempo inteiro justificando. O que precisou ser dito foi dito pois a minha negritude eu não devo a ninguém! Ninguém mesmo. Não mais.
Eu sei sobre a minha ancestralidade. Eu tenho a minha consciência (racial). Eu tenho meus sentimentos e minhas vivências. Eu fiz e faço muito pelo meu povo. O Negrê e meu livro-reportagem Mutuê: relatos e vivências de racismo em Fortaleza (2021) são um dos meus grandes exemplos. Mas eu sei que não preciso/precisaria ficar pontuando os meus feitos. De todo modo, fiz e continuarei fazendo pelo meu povo, talvez muito mais do que muita gente negra (alienada e com consciência embranquecida – infelizmente).
E o mais engraçado de todo esse assunto é alguém (muitas vezes aleatório e que não me conhece de verdade (íntimo e pessoalmente) e/ou apenas pela internet) querendo saber e falar sobre mim e a minha história mais do que eu mesma hahahaha. Chega a ser cômico.
Foto de capa: Lucas da Miranda/Pexels.
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Jornalista profissional (nº 4270/CE), preocupada com questões raciais, e graduada pela Universidade de Fortaleza (Unifor). É Gestora de mídia e pessoas; Fundadora, Diretora Executiva (CEO) e Editora-chefe do Negrê, o primeiro portal de mídia negra nordestina do Brasil. É autora do livro-reportagem “Mutuê: relatos e vivências de racismo em Fortaleza” (2021). Em 2021, foi Coordenadora de Jornalismo da TV Unifor. Em 2022, foi indicada ao 16º Troféu Mulher Imprensa na categoria “Jornalista revelação – início de carreira”. Em 2023, foi indicada ao 17º Troféu Mulher Imprensa na categoria “Região Nordeste” e finalista no Prêmio + Admirados Jornalistas Negros e Negras da Imprensa Brasileira. Soma experiências internacionais na África do Sul, Angola, Argentina e Estados Unidos.