As nuvens carregadas, o céu cinzento e o assobio fantasmagórico do vento que soprava do mar davam o tom sombrio. Em 1980, numa tarde nublada, minha mãe e eu, aos quatro anos de idade, com as bandeiras do Vaticano e do Brasil nas mãos, esperávamos para assistir ao Papa João Paulo II atravessar as ruas de Salvador (Bahia). A cidade mais negra do Brasil, minha cidade natal.
O Brasil é o país com a maior população católica no mundo. Há igrejas em quase todos os bairros, crucifixos na maioria das casas e freiras percorrem as cidades como uma lembrança permanente da catequização que tentou aniquilar a humanidade dos primeiros povos daqui: os Tupi-Guarani.
Não sei quem me ensinou, mas aprendi o “Sinal da Cruz” assim que comecei a andar. Além disso, e para surpresa de muitos estrangeiros, o Brasil é também o lar da maior população negra fora da África, com mais de 120 milhões de descendentes de africanos escravizados.
Para praticar nossa religião, meus ancestrais tiveram de usar o sincretismo como arma de camuflagem. Fingindo adorar ao cristão São Jorge, porém, na verdade, louvando ao Yoruba Orixá Ogum da África Ocidental, o Deus do caçador e da força. Dançando e cantando em uma mistura de português, bantu e iorubá, eles guardavam sua lealdade em seus corações. Enquanto isso, os portugueses consideravam essa adoração primitiva e desajeitada.
Nos séculos anteriores ao tráfico negreiro, os ibéricos se tornaram especialistas em perseguição religiosa ao subjugar os judeus contra a inquisição. Historicamente, as técnicas de opressão a um grupo são aprendidas e adaptadas para conquistar outros grupos. É um fato notado por vários historiadores, de que o antissemitismo na Península Ibérica, a categorização e o tratamento dos judeus forneceram a sementeira final para o embasamento do racismo negrofóbico cristão que se seguiu.
Colonização
No Brasil Colonial (1500-1815), os ibéricos utilizaram o conhecimento adquirido contra os judeus e tornaram expressamente proibido qualquer culto diferente do Cristianismo. Os primeiros muçulmanos africanos trazidos do Norte da África para serem escravizados na Bahia escondiam partes do Alcorão dentro das bíblias cristãs e de pequenos colares. Tentavam disfarçar suas crenças a todo custo pois sabiam que, se apanhados, poderiam receber até mil chicotadas. As práticas escravistas brasileiras eram uma das mais crueis do mundo. A título de comparação, nos Estados Unidos da América as piores punições eram cerca de 400 chicotadas.
Os primeiros colonizadores portugueses entenderam desde cedo que, para controlar nosso povo e manterem-se no poder, eles precisavam esmagar nossos espíritos e eliminar qualquer vestígio de esperança. E como se sabe, quase nada traz mais esperança que a religião e a espiritualidade.
88 anos após a abolição da escravidão no Brasil, meus pais me carregavam no colo à margens do Oceano Atlântico, na praia da Barra, em Salvador (BA). Diferentemente de nossos ancestrais, eles miravam rumo ao Leste, e não ao Oeste, como faz quem vem da costa africana mais próxima ao Brasil. Na cerimônia, trouxeram também seis ovos, plantas sagradas e uma pitada de sal para purificar meu corpo. Recitaram orações e cânticos que aprenderam com seus pais, eles me batizaram.
Os cristãos celebram a Nossa Senhora dos Navegantes como sua Santa, mas meus pais reverenciavam a orixá Iemanjá, a rainha dos mares. A decisão de me batizar de acordo com as tradições de nossos ancestrais foi um ato desafiador. Em vez de nos dobrarmos ao catolicismo onipresente, levamos a resiliência africana para o futuro.
A capoeira afro-brasileira, única arte marcial originalmente das Américas, é um grande exemplo dessa engenhosidade do nosso povo. Originalmente praticada para manter nossa soberania corporal, a capoeira era vista como uma simples dança primitiva pelos senhores de negros escravizados. Apesar de seus próprios olhos apresentarem provas do contrário, não conseguiam acreditar em nossa capacidade de autodeterminação. Os racistas sempre nos subestimaram e isso pode ser encarado como uma vantagem.
Ao crescer, lembro-me do ciúme tomando conta do meu corpo, do calor no meu peito e do aperto na minha mandíbula quando meus amigos brancos podiam recitar com orgulho suas histórias e falar de seus ancestrais europeus com precisão. “Eu sou da Calábria”, eles diziam. “Meus pais são do sul da Alemanha”, continuavam, geralmente com um sorriso malicioso. Tudo o que ouvia era: “Eu sou melhor do que você, negrinho”. Eu estremecia de raiva cada vez que os escutava. Ainda hoje, sinto muito rancor quando ouço isso deles.
Eu nunca acreditei no Catolicismo. Na verdade, acho que nenhum de nós nunca acreditou de verdade. Seguimos nossas tradições africanas de compartilhar alimentos, espalhar alegria e passar tempo uns com os outros por pelo menos uma noite ao ano. Festejar o Natal em família, por exemplo, nunca foi sobre aquele homem de braços abertos que vive no topo do Corcovado, no meio da Floresta da Tijuca.
A torta de frango
No Brasil que eu cresci, nos anos 80 e 90, a maioria das famílias negras era pobre e muitas viviam em favelas. Minha família era de classe média baixa, o que não era muito, mas o suficiente para nos tornar uma exceção no bairro onde eu vivia, na Ilha do Governador (RJ). Lembro-me que havia poucas famílias negras como a nossa, os lugares que frequentávamos estavam sempre cheios de pessoas brancas. Nossa ceia de Natal, porém, era nosso refúgio. Uma ilha de independência e de liberdade. Todos os anos naquela noite, vivíamos em uma casa só de negros, onde estranhos não eram solicitados, nem desejados.
No início dos anos 90, minha mãe apresentou uma nova receita à mesa de Natal: a torta de frango. Uma versão rústica de um prato brasileiro considerado chique naquela época, a empada. No entanto, a torta de galinha que fazemos é com ingredientes bem mais baratos. Acompanhados de um punhado de hipertensão e colesterol.
Depois de cozinhar a cebola, o alho, o pimentão, o tomate, o coentro e o caldo de galinha, colocamos as asas e os pés de frango, mexendo tudo até envolver a casa em um aroma que lembra véspera de Natal. Mergulhamos o pão no leite e adicionamos um pouco de sal para contrastar com a doçura das fatias. Em seguida, colocamos o presunto e o queijo por cima, repetindo até chegar ao topo da assadeira. Nos sentíamos extravagantes quando podíamos polvilhar um pouco de queijo parmesão para dar mais sabor.
Para minha família, celebrar o Natal não era cristão. Gilberto Gil canta que aceitar o Senhor do Bonfim foi tanto resistência, como rendição. A assimilação, enfim, a nossa vingança. Nós sobreviveríamos aconteça o que acontecer. Mas, diferente de nossos ancestrais, não precisamos produzir raiva, ódio e cortisol.
O Natal agora é o momento de produzir endorfinas de alegria. À medida que eu e meus irmãos envelhecíamos, voltar para casa no Natal e comer a torta de galinha se tornou a nossa tradição. Quando me mudei para a Austrália, o Natal continuou sendo uma data para ver minha família. Sem minha mãe, que continuava residente no Brasil, fui obrigado a aprender a receita da tal torta.
Continuidade
Já se foram 18 temporadas e, até recentemente, não conseguia me imaginar passando a noite de 24 de dezembro sem essa iguaria. Até que, no ano passado, após uma visita ao nutricionista, fui recomendado a aderir a uma alimentação mais balanceada.
Tive uma crise filosófica. Será que aquele prato humilde que preparamos durante todos esses anos era realmente o motivo do meu anseio? De fato, tenho uma forte ligação emocional com o prato, mas na resposta descobri que nunca foi sobre a torta em si. Era sobre as pessoas ao meu redor, sobre a nossa família, sobre a nossa afro-brasilidade. Era sobre ancestralidade.
Eu amei a torta de galinha por muitos anos e com certeza sentirei falta dela em nossos jantares ateus de Natal. O que me conforta é saber que reuniões familiares continuarão acontecendo por muitos anos. Eu espero que algum dia meus filhos leiam este artigo e entendam o que quero dizer. Se eles o fizerem, a torta de frango terá sobrevivido.
Nossas histórias não começaram com a colonização e não vão terminar aqui. Como na torta, existem camadas e mais camadas em nossa existência. Espero que um dia eles também celebrem a família à maneira de nossos ancestrais. Fazendo isso, os cinco séculos de resistência e milhares de anos de existência terão valido a pena.
Foto de capa: Arquivo pessoal.
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Negro, nordestino e radicado na Austrália desde 2003. Tem Bacharelado em Digital Mídia & Escrita e atualmente cursa o Mestrado de Pesquisa, ambos pela Victoria University, em Melbourne. Guido é um Learning Designer, poeta e escritor. Seus artigos podem ser lidos na SBS voices, Cordite Poetry, Mantissa Poetry, Alma Preta Jornalismo, Guia Negro, A Voz Limpia, Peril Magazine, RightNow, Meanjin, Overland e Ascension Magazines. Guido participou de festivals como o Emerging Writers Festival & The Melbourne Writers Festival. É escritor contribuinte da Antologia Growing Up African in Australia, lançada na Austrália pela Black Inc. em 2019 e das Antologias Racism: Stories on Fear, Hate & Bigotry (Sweatshop, 2021), Resilience: Mascara Literary Review (Ultimo Press, 2022), Povo (Sweatshop, 2024) & Handbook of Critical Whiteness | Deconstructing Dominant Discourses Across Disciplines (Springer, 2023).