Entrevista Pretassa

“Eu não poderia trair minhas origens, trazendo qualquer outra coisa que não fosse falar de África”, diz Liana D’Afrika

“Eu não poderia trair as minhas origens e o meu propósito trazendo qualquer outra coisa que não fosse falar de África!”. É o que dispara a estilista Liana Santos, 42, fundadora da marca Liana D’Afrika, que marcou forte presença com a coleçãoUtopias Negras Ancestrais na passarela do DFB Festival 2023, no primeiro dia, 31 de maio, em Fortaleza (CE).

Mulher negra carioca que atua no mercado da moda há quase 30 anos, Liana Santos soma experiências em diversos segmentos, como varejo de moda, inauguração de lojas em shoppings pelo país, marketing e visual merchandising durante a trajetória longa de sua carreira. Mas o seu primeiro encontro com esse universo foi quando fez seu próprio vestido de 15 anos. E sua marca autoral, slow fashion e de caráter ancestral existe desde 2015.

Utopias Negras Ancestrais partiu de um sonho e um desejo de entender as concretizações da vida adulta e madura, segundo Liana. E em seu processo criativo, ela foi permeando até parar na ideia do colo materno, ao lembrar de sua mãe já falecida, Ana Maria Conceição da Silva, e a forte conexão que as duas tinham/têm, mesmo com a separação física. “É a gente desconectar da dor e se jogar na cura porque só depende da gente mesmo!”.

Sobre a coleção, a equipe do Negrê teve oportunidade de conversar com a estilista Liana D’Afrika, acompanhar o desfile e, assim, documentar a sua passagem tão única, rica, necessária e potente em um evento de arte, criatividade e moda como o DFB.

Negrê – Por que contar um recorte da história do Continente Africano num evento como o DFB?

Liana Santos/Liana D’Afrika – A marca Liana D’Afrika tem como princípio e ideologia citar sempre África, a pesquisa dentro de África, a riqueza que é a África além de trazer um resgate ancestral de identidade de matriz afro brasileira nas roupas para mulheres que ainda não se conhecem pretas. Então, a responsabilidade foi acho que dobrada de estar no Dragão pela primeira vez pisando no solo do DFB 2023 porque a moda é uma ferramenta de empoderamento. E aí, eu não poderia trair as minhas origens e o meu propósito trazendo qualquer outra coisa que não fosse falar de África. A coleção ela tinha muita força de África, mas ela tinha também um quê maternal ancestral de mãe, né… é um sonho que eu tinha das utopias de querer e entender que a gente precisa continuar a caminhar e fazer o nosso melhor independente da gente não ter um colo de mãe.

Momentos do desfile da coleção Utopias Negras Ancestrais, assinada por Liana D’Afrika. Fotos: Roberta Braga/DFB.

N – Como foi o processo criativo da coleção Utopias Negras Ancestrais?

L.S. – As Utopias Negras Ancestrais partem do princípio que… muita gente entende que a gente faz uma moda vazia e eu sempre gosto de trazer uma moda com história, com conotação ancestral, com conexão… e aí eu acho que é isso que cria esse diferencial mesmo para estar no Dragão. Se eu não tivesse um diferencial, talvez eu não tivesse na passarela do Dragão. A gente fala de África, mas a gente fala também de moda de alfaiataria, a gente fala de sustentabilidade, fala de criação… todas as peças tinham um rebuscado de uma modelagem, tinham um corte para enaltecer a mulher preta. Quando eu vou na rua, procuro a palha da costa, quando eu vou nos espaços de matriz afro brasileira né que a gente dita ‘Casas de Umbanda’, procuro e compro búzios e a gente para num desenho pra ser estampado isso num tecido, isso é um posicionamento político. Isso tá dentro do que eu sonhei pra contar, pra fazer sentido pra quem tá vendo. Porque eu tenho certeza que a emoção ela não foi só minha!

Momentos do desfile da coleção Utopias Negras Ancestrais, assinada por Liana D’Afrika. Fotos: Roberta Braga/DFB.

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N – Que herança ancestral é essa que nós, pessoas negras, temos que preservar estando aqui no Brasil? Porque somos africanos em diáspora, né…

L.S. – É… mas a gente não pode ser esse brasileiro ocidental. Não dá mais! A gente precisa ter essa ruptura inclusive com a moda que é um instrumento político. A moda causa posicionamento! A pessoa para usar uma roupa da Liana D’Afrika ou de outras mais marcas ela sabe o que ela quer… o que ela quer! E qual posicionamento e ideologia ela está buscando. Não é uma roupa dita que só mulheres pretas podem usar, não tá dizendo nada disso. Mas é importante saber usar com a historiação.

Momentos do desfile da coleção Utopias Negras Ancestrais, assinada por Liana D’Afrika. Fotos: Roberta Braga/DFB.

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N – A coleção é sobre força, resistência, cura… e o que mais ela pode nos ensinar?

L.S. – Conexão! Essa coleção me mostrou que eu, com pouca grana, filha solo que não tem nem pai nem mãe mas que tá aí sempre buscando o melhor… é… eu não tô sozinha! É uma coleção que eu tive vários parceiros, a parceria com os calçados, com o tecido, com o Dragão aqui abrindo portas para novos talentos. Os meus que ficam lá [no Rio de Janeiro] torcendo, o meu axé que, de certa forma, cuida do meu Orí [cabeça] pra que meu Orí possa dar bons frutos. Então, a Liana D’Afrika como missão de se cuidar, cuidar do corpo, ter continuidade, resiliência pra resistir nesse mercado empreendedor que não é fácil. Então, é um monte de coisas que faz com que a gente se conecte quando você entende que você tem propósito!

Foto: Reprodução/Instagram.

N – Se você pudesse dizer algo para estilistas negros e negras que desejam atuar na moda pra nossa gente, o que você diria?

L.S. – Sonhe! Coloque no papel! Construa metas, aprenda a dizer ‘não’ pra aquilo que não tá dentro do seu foco. Eu tive que dizer muitos ‘não’. Eu tive que dizer não pra relacionamento que acabou e não dava tempo de ir atrás pra ver porque que acabou. Eu tive que dizer: “Não, eu não vou ficar depressiva. Minha mãe não ia gostar de eu estar assim!”. É ‘não’ pra várias pessoas que te usam porque é um mercado horrível, as pessoas não querem ser seus sócios, as pessoas querem que você realize o sonho delas. E aí é isso… é persistência, persistência ela existe porque existe o foco porque existe a determinação. São essas palavras mesmo que eu uso comigo todo dia me cobrando, né?! Porque quando a gente não tem nem pai nem mãe, a gente subentende que pra levar o pão de cada dia pra casa é comigo mesma.

Foto: Reprodução/Instagram.

Foto de capa: Roberta Braga/DFB.

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