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M8: E se Maurício fosse estudante de Psicologia?

O filme M8 – Quando a Morte Socorre a Vida (2020) foi disponibilizado na Netflix recentemente. O longa-metragem conta a história de um jovem negro chamado Maurício no qual se depara com diversas situações diante o ingresso no curso de Medicina. A trama se desenrola quando o protagonista decide ir atrás da identidade e história de um corpo negro usado nas práticas médicas pelos estudantes. Inconformado com a não identificação daquele corpo, Maurício inicia diversas movimentações na tentativa de dar um destino honrado e digno ao homem negro que havia morrido.

Umas das cenas que mais me impactou acontece logo no início do filme, Maurício entra na sala de aula e se depara com um espaço cheio de estudantes brancos de medicina prestes a treinar algum procedimento cirúrgico em cadáveres negros que se encontram deitados nas macas. No ambiente, havia mais corpos negros mortos do que vivo, e isso me trouxe um questionamento: Qual o lugar do corpo negro no curso de Medicina? E a resposta estava na minha frente, a morte. Tive a sensação de que meu corpo poderia estar ali estirado, não identificado e servindo de cobaia para desumanização dos futuros corpos negros que estaria entre mãos brancas.

Tempos depois, ainda elaborando as questões apresentadas pelo filme, me fiz um outro questionamento: Qual o lugar do corpo negro no curso de Psicologia? E aí voltei lá para o início do meu curso há 10 anos e relembrei o processo de invisibilização do meu corpo e de outros parecidos com o meu. Lembrei que praticamente não tive matérias ou discussões relacionadas às questões sociais e psíquicas relacionadas ao povo negro.

Parecia que a minha subjetividade enquanto homem negro não era levada em consideração, que aspectos relacionados a raça não eram válidas para as discussões sobre psiquê, trabalho, desenvolvimento humano, adoecimento, cuidado, políticas públicas, saúde e etc. Quase sempre era apontado um sujeito universal, branco, hétero e dentro de um contexto sociopolítico diferente do que eu vivia.

A invisibilização é uma das formas de se fazer morrer, a partir do momento em que as bases de conhecimentos produzidas pelo povo negro são apagadas, os negros e as negras têm dificuldade de se ver enquanto sujeitos e protagonistas da própria história. O que leva em grande parte a reprodução de narrativas masculinas brancas e europeias e, consequentemente, a construção do auto-ódio.

Segundo a psicanalista e psiquiatra Neusa Santos (1948-2008), em sua obra Tornar-se negro (1990), “a construção de identidade dos negros no Brasil é baseada a partir de um ideal branco, seja na moralidade, na estética ou sabedoria científica. Dessa forma, a identificação da negritude ocorre a partir de diversos processos violentos contra o corpo, projetando a aniquilação do ser negro”.

Cena do filme M8 – Quando a morte socorre a vida (2020). Foto: Reprodução/Netflix.

Realidade distante

Me lembro que, em algumas aulas, eu me sentia perdido, pois os conteúdos se distanciavam de uma realidade que eu vivia, das minhas dores e das questões compartilhadas com outras pessoas negras que estavam nos campos de intervenção, no estágio da faculdade e fora dele. Me recordo de ouvir os professores e as professoras falarem sobre um sujeito universal que não faziam parte do meu universo, mas que estava disposto a encaixá-lo dentro dos parâmetros estabelecidos para encontrar algum sentido nos estudos.

É interessante que eu já ouvi de alguns e algumas estudantes de psicologia a dificuldade de encontrar alguma linha teórica dentro da psicologia que pudesse se identificar. Por isso, fico pensando se essa dificuldade não teria relação com esse apagamento das subjetividades negras nas linhas teóricas da psicologia. Talvez a forma como esses professores traziam as teorias sem articular com questões raciais também tivesse influência nessa dúvida.

O fazer morrer também está relacionado ao apagamento da história e das memórias de intelectuais negros e negras nos diversos campos de conhecimento, seja ele no campo cultural, acadêmico, literário, dos movimentos sociais ou aqueles – que estão ali no enfrentamento diário contra as opressões – e são pessoas da família ou conhecidas do bairro.

Quando uso o termo intelectual, não me refiro às pessoas que cursaram o ensino superior, que são da academia ou que escreveram livros. Neste caso, eu prefiro dialogar com a pesquisadora e escritora baiana Carla Akotirene, que traz a intelectualidade enquanto autoridade do discurso que gera desconforto às estruturas hegemônicas de poder e que não dependem de credencial acadêmica.

Buracos e caminhos

Dito isso, retomo a ideia de que o pagamento dos(as) intelectuais negros(as) se dá em todos os âmbitos e que não foi diferente durante meu curso. Pouco se falou da história, memória e produção de pessoas negras em sala de aula, como se não tivesse ninguém que poderia contribuir para os debates do campo Psi. Confesso que, durante um tempo, eu achei que não existiam autores e autoras negros e negras dentro da psicologia, psicanálise, psiquiatria e outros campos de conhecimento, mas depois percebi que era só mais uma face da invisibilização e do apagamento das pessoas negras e das suas produções de conhecimento, no qual alguns chamam de epistemicídio.

Na época da minha graduação, eu procurei buscar outros espaços que eu pudesse ler, produzir e compartilhar vivências negras, o que me auxiliou na construção de uma leitura crítica de mundo. O começo da minha consciência racial, inclusive, se deu através do movimento estudantil, no qual me deu régua e compasso para compreender o meu lugar como homem negro na sociedade.

Em algumas das conversas que tive com os meus, eu ouvi uma frase que me chamou atenção “Não deixa a faculdade atrapalhar seus estudos”. Desde então, levo essa frase comigo compreendendo que a estrutura da universidade não vai e não quer dar conta de promover um saber crítico e emancipatório para o povo preto. Desta forma, cabe a nós fazer esse tensionamento dentro e fora dos muros da universidade, construindo também espaços autônomos de produção de conhecimento e atuação política.

Quando olho para minha trajetória, eu me emociono em saber que fui, junto com outros, resistência. Posso dizer que participei de diversas ações e me organizei contra as tentativas de fazer morrer. Percebo que o ambiente da minha faculdade e em outras já estão com outra cara, trazendo diversos questionamentos, com mais professores negros e negras e com referenciais teóricos que dialogam com nosso povo. Porém, ainda se tem muito trabalho pela frente! Enquanto isso, seguimos sendo Maurício, resgatando as nossas histórias e memórias do nosso povo, para que nos façamos vivos de forma ancestral em meio a tantas tentativas de nos aniquilar.

Referências

SOUZA, N. S. Narcisismo e Ideal do Ego. Tornar-se Negro ou As Vicissitudes da Identidade do Negro Brasileiro em Ascensão Social. Coleção Tendências, Editora Graal, 2ª edição. Cap. 04, p. 33-44, 1990.

Foto de capa: Divulgação/Netflix.

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