A segunda-feira, 17 de maio, era pra ter sido só mais um dia normal de uma ida à ginecologista mas acabou não sendo. Não mesmo. Quando cheguei à clínica, fiquei aguardando ser chamada pra entrar no consultório. Vi passar pelo corredor uma médica com o cabelo cacheado. A princípio, não consegui ver o rosto, devido à máscara. Foi um momento rápido. Mas pensei: “Será que é a médica que vai me atender? Não, não é possível!”.
Quando ela voltou pro consultório, meu nome foi chamado no monitor. Então, eu fui e entrei na sala e pude confirmar. Eu estava sendo atendida pela primeira vez na minha vida por uma ginecologista negra! Uma mulher negra de pele clara e cabelos cacheados como eu. De repente, eu me vi ali… eu me reconheci. Ainda sem acreditar, mas já acreditando, eu falei: “Eu não acredito que é uma médica negra! No meu plano de saúde, eu só encontrei um médico negro até hoje e era um negro africano”.
Ela sorriu com os olhos, foi o que pude ver estando ela com máscara naquele instante. “É difícil encontrar, não é? Eu era a única da minha turma de Medicina…”, disse. Naquele momento, eu lembrei e falei também que eu tinha sido a única negra na minha turma de Jornalismo… então, eu estava sendo atendida por uma médica negra.
A maioria das mulheres sabem que exames ginecológicos são um pouco invasivos e, dependendo, podem doer bastante. Mas eu precisava ter ido. Eu precisava prezar e cuidar da minha saúde. A última vez em que eu tinha ido fazer o tal exame tinha sido em 2018. Foi com uma médica branca. Foi umas das experiências com ginecologistas brancas mais horríveis que já vivenciei. Eu estava tensa, ela impaciente. E me machucou… então, lembro que saí do consultório bastante dolorida. Fiquei alguns dias com um incômodo que depois culminou em uma candidíase vaginal. Não sei ao certo se houve relação direta, mas a experiência do exame foi horrível. Fiquei 2 anos sem refazer o exame de rotina devido ao trauma e, depois, por causa da pandemia.
O fato é que quando a gente vai procurar a lista de médicos e médicas no plano de saúde ou seja onde for pra marcar um atendimento, dificilmente imaginamos que algum daqueles nomes pode ser o nome de uma pessoa negra. Um profissional que me tratará bem. Um profissional que fará diferença na minha vida. Isso quase pouco passa pela cabeça…
A médica me recebeu tão bem que eu pude conversar, tiras minhas dúvidas e me sentir acolhida. Sem julgamentos, sem imposições, sem violências. Houve muito respeito, muito cuidado e muito acolhimento. Foi assim que eu me senti: respeitada, cuidada e acolhida. Afinal, eu estava em casa. Porque nós, negras, sabemos que estarmos umas com as outras é ancestral. É estar em casa e ser bem cuidada… dificilmente, conseguirei descrever aqui a minha sensação de ter passado por essa vivência e ter tido o privilégio de encontrar uma ginecologista negra em Fortaleza (CE). Foi uma das melhores experiências que tive na minha vida…
Como sempre, fiquei um pouco nervosa no momento do exame e fui acalmada. Não dá para descrever o diferencial em que é, enquanto paciente negra, ser atendida por uma médica negra. A paciência e o acolhimento dela me fez sentir que não ia ser um momento doloroso, como da última vez. Mas eu continuava tensa…
– “É que da última vez doeu bastante e eu fiquei bem dolorida”, falei com um pouco de nervosismo.
– “Mas hoje não vai doer muito não, não se preocupe!”, disse ela.
Então, eu me acalmei e respirei fundo. Em seguida, respirei leve. Transferi minha respiração para a pélvis, relaxei e consegui. Foi diferente, pois não me senti machucada. Não foi violento. Como muitas de nós, negras, trazemos relatos e experiências ruins (e porque não dizer traumáticas) com médicas brancas e que acabam sendo impacientes (e porque não também dizer violentas!).
É impressionante, como conversando com algumas irmãs negras, eu também ouvi relatos semelhantes aos meus de experiências traumáticas. A minha convicção é de que muitos profissionais (não-negros), que estão na Medicina, não cuidam da população negra da forma pela qual precisamos. A minha felicidade é de que estamos tendo muitos avanços dentro da nossa comunidade e eu tenho a possibilidade de ser atendida por uma médica negra. Mesmo que em “pequena” probabilidade.
Há um mito que faz as pessoas acreditarem que a mulher preta é mais resistente à dor. E há um estudo – o Clinician–Patient Racial/Ethnic Concordance Influences Racial/Ethnic Minority Pain: Evidence from Simulated Clinical Interactions –, publicado em agosto do ano passado, que diz que pacientes negros quando atendidos por médicos negros sentem menos dor. Uma das autoras da pesquisa, Elizabeth Losin, constatou que pacientes negros relataram que sentem menos incômodo durante as intervenções quando atendidos por médicos pretos, diferente do que quando recebiam procedimentos de médicos brancos ou hispânicos.
Quando eu vi alguém comentando no Twitter sobre esse estudo feito nos Estados Unidos, eu imaginei que sim, é muito possível. É possível sim ser atendida por uma médica negra e sentir menos dor durante um exame invasivo. É possível sim ser bem tratada e se sentir cuidada. É possível olhar pra um futuro próximo (já que quero ser mãe em breve) e ter menos medo de violência obstétrica. É possível! Porque se houver uma profissional negra na equipe, eu me sentirei bem e acolhida.
A doutora negra que me atendeu nem sabe, mas ela fez do meu dia um dia melhor. Ela me fez acreditar (e lembrar) que eu posso ser respeitada, acolhida e bem cuidada dentro de um consultório. Infelizmente, eu não consegui expressar esse sentimento no momento da consulta pra ela. Apenas agradeci e fui grata ao “acaso” por esse achado e pela vivência valiosa. E, de forma alguma, eu poderia guardar essa experiência e esse relato só pra mim… espero que seja a primeira de muitas.
Foto de capa: Francisco Venancio/Unsplash.
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Jornalista profissional (nº 4270/CE) preocupada com questões raciais, graduada pela Universidade de Fortaleza (Unifor). É Gestora de mídia e pessoas; Fundadora, Diretora Executiva (CEO) e Editora-chefe do Negrê, o primeiro portal de mídia negra nordestina do Brasil. É autora do livro-reportagem “Mutuê: relatos e vivências de racismo em Fortaleza” (2021). Em 2021, foi Coordenadora de Jornalismo da TV Unifor. Em 2022, foi indicada ao 16º Troféu Mulher Imprensa na categoria “Jornalista revelação – início de carreira”. Em 2023, foi indicada ao 17º Troféu Mulher Imprensa na categoria “Região Nordeste” e finalista no Prêmio + Admirados Jornalistas Negros e Negras da Imprensa Brasileira em 2023 e 2024. Soma experiências internacionais na África do Sul, Angola, Argentina e Estados Unidos.