A data de hoje pode representar para muitas pessoas um dia delicado, principalmente para a população negra. Isso porque quando vamos observar onde estão os homens negros nesta sociedade racista e patriarcal, os resultados são alarmantes. Estamos no topo das estatísticas dos homicídios, suicídios, população carcerária e em situação de rua. Muito desses homens eram/são pais, mas tiveram a paternidade rompida devido a máquina de exterminar pessoas negras que é o Estado.
A violência quando não mata o homem negro, deixa morrer, seja fisicamente, ou subjetivamente, a partir da construção violenta de masculinidade e da estrutura racista. Fora das estatísticas, é possível encontrar pais negros presente, que além de construírem outras lógicas de paternidade e cuidado, se organizam com o objetivo de promover cuidado e acolhimento aos outros pais. Essa movimentação também busca discutir os impactos da construção violenta de masculinidade e do racismo na função paterna. E é sobre isso que gostaria de refletir.
O homem negro provedor
A ideia do provedor da casa ainda é um aspecto que atravessa a vida masculina, para que o homem possa ser identificado como tal, é exigido o sustento da família a qualquer custo. Qualquer sinal de dificuldade nesta função, o sentimento de invalidez e desonra se faz presente. A pressão social para cumprir esse papel social de ser homem, leva muitos ao estado de adoecimento, podendo ter consequências graves. Não é difícil encontrar relatos de homens desesperados por não conseguirem prover a casa, homens que ao perder o emprego acabam abusando de substâncias psicoativas, se deprimindo ou saindo de casa por não cumprir este papel social do “homem”.
Lembro que durante minha atuação profissional com a população em situação de rua, era frequente ouvir de homens negros que a motivação para estar na rua teria sido o desemprego e a dificuldade em lidar com esse fato. Os relatos sempre viam com uma narrativa de que preferiam estar na rua do que não honrar com seu papel de homem, que se sentiam inválidos e que não queriam ser sustentados pela família. Pensando na estrutura racista, na qual empurra o povo negro para o desemprego, o mercado informal e aos postos vulnerabilizados de trabalho, o discurso sobre a necessidade do homem preto de sustentar a família se torna perverso e adoecedor.
O homem negro e o afeto
A construção afetiva do homem negro está ligada muitas vezes a concretude das relações e a aquisição de bens materiais. As tantas violências do Estado sobre os nossos corpos nos orienta a um endurecimento emocional, dificuldade de falar sobre si, de escutar outras pessoas, de tocar e permitir ser tocado. Quantos homens negros vocês conhecem com esse perfil? Demonstrar emoções não é coisa de homem, assim somos ensinados… Tudo o que foge à ideia hegemônica do que é ser homem vem nos condicionando desde pequenos, desde a ideia de que não podemos chorar até a de que devemos resolver os problemas sozinhos, calado, em um grande pacto masculino de sofrer em silêncio. Desta forma, outras possibilidades de demonstração de cuidado não são ensinadas aos nossos pais, que, por muitas vezes, expressa esse sentimento a partir de uma educação rígida e disciplinadora.
Recordo que o feito para o meu pai significava proporcionar a mim oportunidades que ele não teve, a exemplo de acessar o ensino superior e a possibilidade de não precisar trabalhar na adolescência. Ele me conta que começou a trabalhar com 14 anos e repetia que eu só precisava estudar, pois era a única coisa que precisava me preocupar. Lembro de me relatar sobre o medo que tinha de que eu me envolvesse com pessoas “erradas”, que usasse drogas e que me envolvesse com outras coisas relacionadas à ilegalidade e criminalidade. Na tentativa de proteção, ele acabava vestindo a roupa do autoritarismo e sempre estava delegando, mandando e exigindo obediência.
Eu confesso que, durante muito tempo, não entendia esse tratamento, até compreender um pouco mais sobre seu contexto de educação e relacionamento familiar. É a partir deste lugar que tenho olhado para o meu pai, dentro de um contexto maia amplo, levando em consideração sua trajetória. Percebendo que não é um movimento fácil aprender e exercitar outras formas de afeto, como o toque, o beijo e a expressão de sentimentos. Olhar a relação como processo e não como cobrança tem sido um caminho para a reaproximação com meu pai.
Caminhos possíveis
Ao trazer construções estruturais violentas que atravessam a relação entre pai e filho, não busco romantizar relações abusivas pautadas na agressão e no desrespeito. Compreendo que existem muitos casos que não há diálogos, nem possibilidade de aproximação, relações que foram construídas de forma destrutiva e violentas.
Cabe a cada pessoa a decisão de reaproximação ou distanciamento dessas relações, mas na minha história, esse olhar macrossocial me fez rever a relação com meu pai. Ele também tem revisitado a sua história com outros olhos, e acho que esse seja um dos caminhos possíveis para nossa reaproximação. A partir deste caminho, proponho exercitar o diálogo sobre fragilidades e vulnerabilidades, acredito que se mostrar vulnerável é um passo importante para a construção de intimidade e de cuidado. Não é um caminho fácil, tampouco confortável, mas, se existe desejo, ele é possível.
Foto de capa: August de Richelieu/Pexels.
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Psicólogo e Especialista em Saúde Mental e Atenção Básica pela Escola Bahiana de Medicina e Saúde Pública (EBMSP). É pós-graduado na especialização em Direito Humanos, Saúde e Racismos pela Fiocruz. Homem cis preto de Salvador (BA) que gosta de compor histórias e sentimentos. Já atuou profissionalmente na política de assistência social junto à população em situação de rua, na área da saúde mental, clínica psicológica e garantia dos direitos da criança e adolescente em contexto de vulnerabilidade. Escreve e se interessa por temas relacionados à saúde mental da população negra, masculinidades negras, relações não-monogâmicas, relações raciais e política.