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Representatividade é sobre o direito ao sonho

Como é bom ser negro em 2020! Como é bom saber que a Beyoncé existe no mesmo tempo em que a gente! Como é bom se ver em algum lugar de grandiosidade! Como é bom sentir a força da realeza! Na última sexta-feira, 31, Beyoncé Knowles lançou o seu mais recente trabalho: Black is King (2020). Foi, para mim, simplesmente a maior obra de arte dos nossos tempos. Para uma pessoa que amo muito, foi como estar no paraíso, no céu, e ser puxada de volta para a realidade ao subirem os créditos.

Os neigros e as neigras da internet ficaram polvorosos, e com razão. O filme é lindo. É potente. É uma ode à negritude enquanto potência, cuja importância foi pontuada pelo Emicida no Roda Viva da semana passada. É, sem dúvidas, uma obra decolonial. É um apontamento de um futuro possível, bem como de um outro olhar para o passado.

Entre críticas, comentários e outras observações, destacou-se no sábado, 1º, um debate sobre a representatividade que tem a Beyoncé para as mulheres negras (e que o filme tem para as pessoas negras em geral). A confusão foi generalizada. O alvoroço maior girou em torno de projetos de emancipação racial – e o lugar que a discussão sobre representatividade ocupa nesses debates. Algumas pessoas entenderam que outras pessoas argumentavam que alcançar algum nível de representatividade solucionaria as questões raciais. Na outra extremidade do debate, houve quem dissesse que a representatividade, por não ser sinônimo de projeto emancipatório, não deve ser celebrada com tanto vigor.

Não é de hoje que certos “debates” na internet se dão dentro da lógica do oito ou oitenta. É da própria tessitura da internet o favorecimento a esse tipo de discussão. Nesse sentido, parece-me necessário apontar um caminho entre os setenta e dois números que separam o oito e o oitenta. Representatividade não é um projeto emancipatório, tratam-se de coisas distintas: fato. Isso não significa dizer que devemos tratar da questão da representatividade a partir de uma negação pura, desconsiderando a sua importância. Nem que devemos colocá-la como ponto central na emancipação, visto que ela, por si só, não soluciona não encerra aquilo que alimenta o racismo. Seria, assim, mais proveitoso pensar na relação que uma coisa pode ter com a outra e no papel que a representatividade pode desempenhar.

Popularizada a partir do mote “Representatividade Importa”, a discussão sobre esse tema já circulou toda a internet há alguns anos, de modo que todo mundo sabe (ou certamente tem alguma noção) do que se trata. Resumidamente, representatividade é sobre sentir-se representado. E se sentir representado é sobre poder ver, em todos os lugares, nos conteúdos que você consome e nos que não consome também, pessoas como você; pessoas com quem você se identifica.

Portanto, dentro um mundo cruel, que nos explora e nos mata diariamente, e que nos coloca para cumprir sempre papéis de subalternidade, ameaça ou violência, representatividade é sobre ver como possível um futuro que não seja aquele designado pelo “destino”. É sobre saber que a gente pode estar na arte, que a gente pode produzir conhecimento, que a gente pode ser uma pessoa boa para o mundo. É principalmente sobre poder sonhar com emancipação, ou seja, sonhar com um mundo que não olhe pra gente como inimigos ou elementos de perigo. Assim, é sobre pensar que é possível sermos olhados com admiração e respeito (e que nós merecemos ser olhados assim).

Pessoas brancas crescem se vendo em todos os lugares, vendo múltiplos futuros como possíveis. Por que a gente não pode ter isso também? Representatividade por si só não resolve muita coisa nem é, em si, sinônimo de emancipação. É importante saber disso. Contudo, ignorar a potência do sentir-se representado para o empoderamento de crianças, jovens e mesmo adultos é ignorar a realidade.

Existe um abismo muito grande entre eu, filho do primeiro negro da família a ingressar em uma universidade, querer ser um Silvio Almeida quando crescer e um primo meu, que cresceu distante de um referencial como esse, sequer ter pensado em fazer faculdade, mas apenas em trabalhar após a conclusão do Ensino Médio. Para além, claro, da orientação parental, a coisa da representatividade certamente desempenhou um papel fundamental no preenchimento desse abismo.

Isso não quer dizer que eu estarei mais livre do racismo que o meu primo. Mais uma vez, representatividade não é emancipação. Contudo, apesar de serem coisas diferentes, não são dicotômicas; a importância de uma não anula a da outra. Representatividade é sobre sobrevivência dentro de um sistema perverso. Uma sobrevivência que passa pela imaginação, pela chance de sonhar.

Há uma breve passagem no prefácio de “As Palavras e as Coisas” (1966), em que Michel Foucault (1926-1984) diz que as heterotopias inquietam “porque solapam secretamente a linguagem, porque impedem de nomear isto e aquilo, porque fracionam os nomes comuns ou os emaranham, porque arruinam de antemão a ‘sintaxe’, e não somente aquela que constrói frases – [mas também] aquela, menos manifesta, que autoriza ‘manter juntos’ (ao lado e em frente umas das outras) as palavras e as coisas”. Esse, creio, é o grande papel da representatividade: construir imagens de que muito mais é possível para nós. Ela nos dá o direito ao sonho; a possibilidade de escrever o mundo em uma outra linguagem que não seja aquela que nos foi imposta à força.

Black is King nos permite a conexão com uma negritude potente, criadora e forte. Trata-se de uma recusa evidente à postura comum de dar centralidade ao sofrimento e à vulnerabilidade quando se fala do ser negro no Ocidente. O filme se insere como um caminho possível na urgente necessidade de nos conectarmos com a negritude enquanto potência, não enquanto tragédia, parafraseando o Emicida na antes referenciada entrevista.

O trabalho de Beyoncé me fez chorar; é com ele que quero ensinar negritude aos meus filhos. Black is King reescreve o mundo e nos coloca como seres fortes, capazes de, além de resistir a esse mundo, criar uma realidade nova, na qual seja normal para um corpo negro estar em qualquer lugar que seja. O mundo de Black is King é um mundo em que nós somos a representação do belo e podemos enxergar com naturalidade qualquer futuro como possível – é, portanto, uma imagem de heterotopia, na medida em que subverte a lógica hegemônica vigente no mundo de hoje.

Beyoncé restabeleceu a possibilidade de imaginar um novo mundo ao mesmo tempo em que ampliou largamente os horizontes dessa imaginação. O filme, portanto, é representativo não só na medida em que nos mostra essas possibilidades e exalta as nossas potências, mas também na medida em que nos confere o direito ao sonho com um mundo emancipado. Isso é, em si, emancipação? É evidente que não, mas é justamente o sonho com um outro mundo que direciona os nossos esforços no sentido de levar o real para o mais próximo possível desse mundo onírico. Representatividade enquanto o direito ao sonho, portanto, parece-me fundamental nesse processo.

Foto de capa: Reprodução.

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