Escrita Negra

Sob a bênção negra da Deusa

Se alguém pudesse provar a existência de divindades. Sem livros sagrados, ritos, dogmas ou milagres.

Se alguém só apontasse na direção de uma face. E nela fosse possível, como numa catarse, entender o sentido da vida sem que se diga qualquer frase.

Seria como enxergar a olho nu toda a verdade. A fé sendo provada com o empirismo da cientificidade.

O conflito e o confronto inexistindo em paridade. A incerteza de como seria a morte da diversidade.

Mas algo é certo, considerando as desigualdades. Seria homem, branco, hétero e cis, o “alguém” capaz de guiar a nova humanidade.

Do contrário, a recusa à sua “natural bondade”, traria luta e ameaça à sua frágil integridade. Matariam quem ousasse ter ao menos a vontade, de escrever um texto assim, sobre a mentira da equidade.

Como Dandara, por duas vezes, sendo esquecida pela sororidade. A negra e a travesti, sem cor nem sexualidade. Pois ser preta e ser trans não lhes confere passabilidade.

E se fosse negra a face apontada como a mãe da humanidade? Mostrando que existe África em toda localidade. Fragmentada, usurpada. Seu grito encarado como alarde!

Imagine os que reverenciam o semblante claro do criador e sua autoridade, se deparando com uma figura negra, mulher, genitora de todas as sociedades. Inclusive as que a negam, preservando o ego e a vaidade. Ou melhor, em sua voz, silhueta, caminhar, a confusão da identidade. Pois se é deus, é homem, mas e a masculinidade? Teria nascido homem? É um demônio, uma entidade!

Não! Ela é o que é, seus pronomes superam a alheia vontade.

Mas que pensamento extenso! Que criatividade! É loucura quem evoca a razão, tecer ideias sobre divindades. Afinal é cada ser humano que garante sua representatividade. A fé é uma invenção branca, de dominação e perversidade.

Não! Na verdade, os brancos só se apropriaram do direito a fé como verdade. Quando pretos se conectam à sua espiritualidade, é tão forte e verdadeiro quanto a santíssima trindade. E quem sabe não é a deusa, me permitindo escrever à vontade. Permitindo que você leia gozando de liberdade. Pois se as preces de quem me odeia tivessem a superioridade sonhada por quem as eleva a um deus pedindo maldade, eu já teria morrido antes mesmo da primeira frase.

Pensando bem, eu seria só um sonho, assim como a liberdade, morto no tronco, vítima da colonialidade. Mas cheguei até esse parágrafo, como quem chega ao final de uma grande viagem. Foi a luta histórica de um povo, sob a benção da deusa e sua piedade? Não sei. E como poderia saber de coisas da eternidade? Nem sei se esta é mito ou realidade. Mas sei que se uma igreja, uma fé, um livro, um povo, se colocam acima de todos e dominam uma sociedade, é missão de quem crê na deusa, nos deuses, em nada, na ausência da verdade, lutar pelo direito de existir, sem ter mais que resistir, em um eterno combate, contra a opressão de quem prega o amor, mas rouba, escraviza e mata, depois que invade. Missão? Talvez questão de sobrevivência, necessidade.

Um vazio no pensamento agora… silêncio…
é tarde?

*A poesia é de autoria de Paulo Servílio (CE).
Ele é de Fortaleza (CE), onde é professor da educação básica da rede estadual. Atua em projetos voltados às competências socioemocionais, dentro do currículo escolar. Graduado em Geografia pela Universidade Estadual do Ceará (UECE) e mestre em Sociologia pela Universidade Federal do Ceará (UFC). Integra o Laboratório de Estudos em Política, Educação e Cidade (LEPEC), do Departamento de Ciências Sociais da Universidade Federal do Ceará. 

Foto de capa: Binti Malu/Pexels.

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