Há mais de um ano, mudei de cidade à trabalho. Toda mudança tira muita coisa do lugar e estar longe de espaços e pessoas a quem direcionamos e recebemos afeto não é fácil. É um processo se redescobrir frente à dinâmica da nova cidade, criar novos vínculos e estabelecer uma nova rotina. Se firmar e se reencontrar frente essa nova dinâmica não significa esquecer de onde se veio: é sempre muito bom voltar.
Ter ido embora da minha cidade me trouxe a necessidade de estar inteira aos meus afetos quando estou com eles. Aqueles que eu amo e me amam de volta. Aqueles que se fazem presentes no meu dia a dia, mesmo a mais de 300km de distância. Os que sempre mandam mensagens de bom dia e se preocupam com os por menores da minha existência.
“E se a mudança existe em mim, então é normal que os caminhos que eu sigo mudem comigo”
Lucas Misunaga
Viver como quem, um dia, já foi embora. Embora de casa, embora da sua cidade, embora do país, e até embora da vida. Eu nunca estou, então quando eu estou, quero viver tudo. A escritora norte-americana bell hooks (1952-2021), em seu texto “Vivendo de Amor” (1968), fala, dentre outros assuntos, sobre o amor e luto. Ela diz que tenta “diariamente aprender a me despedir das pessoas como se pudéssemos nunca mais nos ver. Essa prática nos faz mudar o modo como falamos e interagimos. É uma forma de viver consciente.”
A autora se refere à morte, mas se entendemos a morte como uma partida, é possível que entendamos também que estamos todos, o tempo todo, partindo. A vida é um movimento infinito: Eu sempre parto, mas parto muito mais feliz abastecida do afeto daqueles que amo.
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Viver, estar viva e ter eles vivos comigo
Esse movimento também me faz pensar sobre estar viva, e querer as minhas e os meus vivos comigo. Não somente mais um dia pra estar viva, mas um desejo pulsante. Corpos como o meu foram sempre acostumados ao trabalho e À sobrevivência. Voltar me possibilitou vivenciar a celebração da minha presença com os meus afetos. Celebrar a minha risada, criar a felicidade artesanalmente, relembrar o som da risada de quem eu amo, do banho de mar, do sol que queima a pele… Retornar também à felicidade, que é uma dívida ancestral.
“Eu não estou sozinha
E saber disso é combustível
Pra encarar mais uma semana
Que começa e eu não sei como termina”
Ryane Leão
Nos caminhos de volta, eu sempre me pergunto o que teria sido se eu não tivesse ido embora. Tendemos a pensar na vida que teríamos se tivéssemos tomado outras escolhas, mas é necessário saber que sempre é tempo de recomeçar e nós (pretos, pretas e pretes*) sabemos fazer isso como ninguém. Se você fosse embora hoje: o que te faria retornar?
Que a urgência de vida seja um guia para uma conexão genuína com o melhor dos outros e de nós.
*Uso da linguagem inclusiva: o Negrê opta por usar o “e” para neutralizar o gênero da palavra e incluir àqueles que não se identificam com feminino ou masculino.
Foto de capa: Davidson Rodriguez.
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Mulher-preta-cearense, filha de Maria do Carmo. Assistente Social e mestra em Sociologia, ambos pela Universidade Estadual do Ceará (UECE). É pesquisadora e especialista em Legislação Social, Políticas Públicas e Trabalho Social (Pótere Social). Encantada pela escrita e movida a expressar mundos através das palavras. Curiosa e pesquisadora, principalmente, nos seguintes temas: juventudes, raça, arte, violência, sistema socioeducativo e questão urbana. Cursa o Doutorado em Sociologia pela Universidade Federal do Ceará (UFC).