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Aprender com Maria Beatriz Nascimento

Como mesmo define Sueli Carneiro, 70 anos, no prefácio da obra Eu Sou Atlântica (2006), Maria Beatriz Nascimento (1942-1995) era mulher, negra, nordestina, quilombola urbana contemporânea, historiadora, poeta, ativista e pensadora. E dentre os vários ensinamentos, Beatriz Nascimento nos possibilita maior compreensão em pensar os lugares do negro na sociedade brasileira, entendendo este sujeito não somente como herdeiro de diversas desigualdades raciais, mas como protagonista de sua própria cultura e história, como detentor e formador de uma história que não se inicia com a escravidão.

Eu sou Atlântica: sobre a trajetória de vida de Maria Beatriz Nascimento (2006), é uma obra organizada pelo professor Alex Ratts, 56 anos, que resgata a história de vida de Beatriz Nascimento, seus escritos, estudos e pensamentos. Há dedicação nesta obra para resgatar as produções de uma estudiosa que tanto tem para nos dizer, cada frase escrita por Beatriz pode nos fazer repensar como nos compreendemos enquanto negras (os/es) em diáspora, em um país como o Brasil que foi construído em cima de um modelo colonialista, que carrega o racismo em sua história. Mesmo diante dessa realidade, buscamos nos manter vivas(os/es), reconstruímos cotidianamente por nós mesmas (os/es) e entre as (os/es) nossas (os/es).    

O corpo negro que já é ancestralmente marcado pela retirada forçada de Áfrika*, continua passando por processos na diáspora que o configura com definições não humanas, processos que criam definições que o coloca majoritariamente no lugar de exclusão. Por isso, esse corpo negro pode ser entendido, como trouxe Beatriz Nascimento, como corpo-documento

Pois o corpo é a prova, é a marca, o que nos torna quem somos e, também o que faz com que o outro tente nos definir. Este outro sendo representado por diversas vezes como a figura branco eurocêntrica ou eurocentrada, que carrega consigo essa legitimidade como poder. As tentativas eurocêntricas de definir nossos corpos baseadas no racismo presente em nosso cotidiano, ainda conseguem decidir sobre nossas trajetórias, até mesmo em nossa falta de identificação ancestral em Áfrika e como um povo preto. 

Mas como se reconhecer em meio a tantas definições feitas a partir do racismo? É difícil o auto reconhecimento quando nosso corpo físico é marcado pelas tentativas de embranquecimento, de extermínios, de desumanização. É por isso que se torna fundamental não se deixar esquecer do que nos mantêm vivas (os/es) no dia-a-dia. Sejam as trocas de afetos e de cuidado, sejam as atividades aparentemente mais simples do dia.  

Algumas cenas de Orí (1989), filme dirigido por Raquel Gerber, tendo como fio condutor o roteiro, narração presença de Beatriz Nascimento, destacam a cultura vivenciada por pessoas pretas entre as décadas de 1970 e 1980. Que mostram como as movimentações culturais foram e, podemos dizer que ainda são, fundamentais para o fortalecimento das pessoas negras em diáspora como celebração de suas ancestralidades e de suas vidas, como por exemplo, desfiles e bailes blacks

Momentos para o encontro, para o aquilombamento. Maneiras de refúgios que nos permitem sentir nossa existência, nos reconhecer entre as (os/es) nossas (os/es), estar em comunidade. É existir, é estar viva (o/e). Pensar na possibilidade de poder se celebrar ancestralmente e se enxergar além das violências raciais, evidentemente não é algo que consigamos com facilidade. Por muitas vezes, nem nos questionamos se é possível ou não. Apenas não vemos o direito de pensar sobre isso, de praticar o cuidado sozinha (o/e) ou em comunidade. Ainda assim, vale a questão: O que te mantém viva (o/e)? Qual o seu refúgio, sua proteção? 

Beatriz Nascimento, ao mesmo tempo que não me deixa esquecer das violências raciais que ainda marcam a história das populações negras em Áfrika e na diáspora afrikana, não me deixa esquecer que eu tenho uma história, que eu construo uma história hoje, que eu tenho a quem reverenciar. Reverenciar uma ancestralidade que não possui sangue de genocídios nas mãos, uma ancestralidade que não é apodrecida.

Vale lembrar que é fundamental o questionamento diário de como se sustenta epistemologicamente a história da população afrikana e afrodiaspórica. E é por meio do reconhecimento das (os/es) estudiosas (os/es) como Beatriz Nascimento que transformam o status quo e as visões de mundo com responsabilidade e consciência racial. Mesmo que esse problema racial não tenha sido criado por nós, pessoas pretas. 

*Em respeito a nomenclatura não colonial, é possível a utilização da letra “k” e não da letra “C” para referir-se à Áfrika. Não há utilização da letra “C” nas línguas nacionais Afrikanas.  

Foto de capa: Divulgação/Arquivo Nacional.

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