Os negros brasileiros como a última resistência contra o fascismo da extrema direita
Estávamos no final dos anos 80 ou talvez no começo dos anos 90… lembro-me de chegar a uma agência de banco na Ilha do Governador, bairro da Zona Norte carioca, onde eu cresci no Rio de Janeiro (RJ). Eu devia ter uns 13 ou 14 anos, idade em que, no Brasil, todo menino negro deixa de ser criança para se tornar um potencial Emmett Till (1941-1955). Eu estava segurando as mãos de meu pai quando fomos parados na porta giratória por um dos seguranças do banco.
– “Tire tudo de seus bolsos, senhor”, ordenou o segurança.
Esse “senhor” significava exatamente o oposto de um título honorífico. Todo negro sabe como essa palavra soa aos nossos ouvidos: um misto de ordem, desdém e raiva.
O segurança, também negro, tinha um pequeno afro sob seu capacete policial e um revólver calibre 38 nas mãos. Ao receber a ordem, meu pai imediatamente soltou minha mão e retirou de seus bolsos uma carteira de couro preta, um chaveiro de metal e três moedas. E para demonstrar que não pretendia desafiar a autoridade do segurança, tirou também seus óculos de miopia e os colocou na mesa de inspeção.
Após ele passar pela porta giratória, seria minha vez de atravessá-la e, ainda inocente, pensei: “Sou uma criança, não é possível que eles peçam para me revistar”. Estava errado.
– “O que você tem nos bolsos?”, perguntou o segurança.
Eu ainda era muito novo para receber o raivoso “senhor”.
– “Meus bolsos estão vazios!”. Respondi, abrindo bem os braços com as palmas voltadas para cima.
– “Levanta a camisa! O que que cê tem na cintura, então?”. Ele procedeu de forma mais rígida.
Resignado, obedeci. Apesar de jovem, eu já havia aprendido sobre todos os rituais de humilhação. Isso fazia parte da minha rotina e da rotina de todas as famílias negras como a minha no Brasil. Eu sabia que para sobreviver àquelas interações diárias, era necessário abaixar a cabeça e seguir as instruções recebidas sem hesitar.
O que nos Estados Unidos chamam de “a conversa”, no Brasil é um mantra que todos os meninos negros aprendem desde muito novos: a polícia está aí para nos matar. A vida era assim. Ser negro no Brasil é viver em uma guerra. E ninguém deve ir para a guerra despreparado.
O racismo é tão onipresente que, por grande parte da minha vida, acreditei que fosse natural. Que essa era a única realidade. É inegável que toda a minha visão de mundo é a partir dessa perspectiva. Hoje, mesmo vivendo uma vida um tanto confortável na Austrália, nada alterará o que absorvi no início da vida no Brasil.
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Outro ponto de vista
Imagine um menino branco da mesma idade que eu e de circunstâncias sociais semelhantes às minhas crescendo nesse mesmo Brasil. Mal posso conceber como é para alguém aprender precisamente as lições opostas.
Esse garoto cresce aprendendo que ele merece viver sem problemas. Ele cresce ouvindo que ele está destinado a ser advogado, contador, ator de TV, ou seja, o que ele quiser ser! Ele sabe que, por ter a aparência que tem, fará parte do crème de la crème da sociedade. E pior, acreditando que ele é geneticamente e moralmente superior. Sendo instruído por livros didáticos que dizem que seu povo era composto por reis, rainhas e grandes conquistadores. Mais importante, aprendendo que o “outro” (negros, indígenas e outros não-brancos) merece o sofrimento porque é preguiçoso e estúpido. Ele acredita na meritocracia e que, por todo o seu ‘esforço’, ele merece estar aonde está.
Esse menino cresce estudando nas melhores escolas e ao lado de pessoas com as mesmas características físicas que ele. Ele vê essas mesmas pessoas em cargos de liderança em todos os lugares. Nunca terá que abaixar a cabeça para a polícia ou para qualquer pessoa porque ele é um “cidadão de bem”.
Agora imagine que esse “subalterno” que vive no imaginário dos eurodescendentes por seis séculos, consiga, por um milagre, perseverança e muita sorte, um emprego melhor do que o do garoto branco. Que voe nos mesmos aviões que ele. Que, após mais de 500 anos, exija os direitos mínimos de um ser cidadão. Para esse garoto, algo pareceria absurdamente errado. Seria difícil acreditar que tudo o que aprendeu era mentira.
A questão é: ele foi enganado, sim. Mas não por nós. Homens brancos da elite econômica lhes vendeu um sonho impossível de supremacia branca. Num delírio coletivo de se acharem melhores somente por terem menos melanina.
Nesse cenário se deu a Eleição Presidencial de 2022
Durante os séculos XVI e XIX, o Brasil foi país do Continente Americano que recebeu o maior número de africanos escravizados e o último a abolir a escravidão, em 1888. País onde, a cada 23 minutos, um jovem negro é morto. Lugar que deu espaço para um plano maquiavélico de extermínio e permitiu que a população europeia crescesse e prosperasse com a ajuda do governo. Nesse país, não é de se estranhar que hoje a população negra esteja de um lado e a branca, de outro.
Pode-se dizer que a eleição foi dividida racialmente. Cidades com a maioria da população negra votaram em Lula, 77, enquanto a maioria das cidades brancas votou em Bolsonaro, 67.
Assim como nos Estados Unidos (vide Raphael Warlock), onde os afro-americanos, muitas vezes, são a última defesa contra a tirania e a ultradireita, podemos afirmar que os afro-brasileiros são os maiores defensores da democracia no Brasil.
Porém nada é tão simples assim
As pessoas fazem escolhas por vontade própria ou são induzidas por forças externas ou circunstanciais a fazê-las. Muitos afro-brasileiros votaram em Bolsonaro, é verdade. Assim como há muitos brancos lutando contra o fascismo. Porém, sem entender as raízes raciais da sociedade escravocrata brasileira, é impossível compreender como chegamos até aqui.
O Dr. Michel Gherman, um acadêmico em História Social da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), argumenta que o atual governo não é apenas supremacista branco, mas também que muitos de seus membros são simpatizantes nazistas descarados.
O gerente
Ao entrarmos no Banco do Brasil, após a humilhante “recepção”, meu pai e eu esperamos por pelo menos uma hora para sermos atendidos pela caixa. Ela era uma típica funcionária federal, bem vestida, cabelo lisos castanhos claros preso em um coque e unhas muito bem feitas.
Depois de rapidamente olhar para os boletos que meu pai a entregou, ela disse:
– “Não é nesta fila, senhor”.
Sabíamos que estávamos na fila correta; no entanto, isso exigiria que ela visse meu pai como uma pessoa digna de sua humanidade e de seu tempo, algo que ela foi inquestionavelmente treinada para não enxergar.
Meu pai permaneceu calmo e pediu para que ela chamasse o gerente. Na época, a política do banco era de que, se um cliente pedisse, eles deveriam atender. Demorou um pouco até que um homem branco de meia-idade, óculos largos, camisa xadrez e sapatos pretos apareceu. Após uma carteirada do meu pai, em que disse que trabalhava para a Força Aérea Brasileira (FAB), o gerente nos tratou incrivelmente bem. Café e cinzeiro para meu pai, e até chocolate quente para mim. Conseguimos o que precisávamos e saímos do banco tranquilamente.
Naquele momento, a democracia caminhava lentamente de volta ao Brasil após uma longa Ditadura Militar (1964-1985). Fazer parte da Força Aérea protegeu meu pai naquele dia. Ninguém é totalmente bom ou mau. Na maioria das vezes, o mau é circunstancial. O que de pior enxergamos em nossos inimigos, também vive dentro de nós.
Ao sairmos do banco, meu pai disse algo que carrego até hoje:
– “Meu filho”, disse ele, olhando para mim enquanto atravessávamos a rua em direção ao conjunto habitacional de apartamentos onde morávamos.
– “Nunca brigue com a caixa. É sempre culpa do gerente. Lute contra o gerente”.
Isso era o marxismo e a filosofia Ubuntu combinados. Luta de classes e sabedoria de resistência racial, tudo junto. Eu podia sentir as palavras correndo em minhas veias, entrando em meu cérebro e sendo registradas para toda a eternidade. Eu sabia que estava aprendendo algo importante. Para mim, aquelas palavras foram elucidantes.
O cenário em que o Brasil se encontra hoje é semelhante ao que vivemos quando fomos àquele banco décadas atrás. Quando entramos naquela agência, reconhecemos que estávamos enfrentando uma opressão estrutural. Os soldados rasos do racismo têm muitas faces, gêneros e classes sociais. Aqueles que escolheram ou foram escolhidos para realizar tarefas para os opressores ou para se tornarem eles próprios os opressores, como Paulo Freire (1921-1997) argumenta, vêm de muitas esferas sociais.
Naquele dia, meu pai decidiu usar sua força somente quando fomos obrigados a revidar. Tivemos que nos tornar os opressores circunstanciais.
Quem votou em Bolsonaro?
A maioria dos brasileiros que votou em Bolsonaro faz parte de uma elite (ou é influenciada por ela) intelectual egoísta de homens e mulheres que vê raça, gênero e classe como seu principal inimigo.
Eu luto contra essa elite mesquinha, obtusa e covarde. Entrincheirado num flanco de uma metafórica guerrilha urbana, travando uma batalha contra soldados de infantaria, os perdidos, os equivocados e os confusos. Minha vontade é de brigar com as caixas do fascismo!
Bolsonaro é o gerente, mas ele não está sozinho. Oligarcas brasileiros destroem o Pantanal e a Amazônia com plantações lucrativas, sem se importar com a mudança climática, nem com a fauna e a flora. Corretores da bolsa de valores que se importam mais com o valor do dólar do que com a desigualdade social. Donos de negócios sem escrúpulos que pagam mal para lucrar ao máximo. Mulheres da elite que perpetuam descaradamente a escravização das empregadas domésticas modernas. E também os acadêmicos que ajudam a apoiar essas ideias com falácias e falsas dicotomias.
Todos esses também são gerentes e, como meu pai sabiamente me ensinou, precisamos estar atento a eles. Temos que chegar em suas salas, mesmo que não educadamente. De qualquer maneira, é na gerência que a guerra pela democracia será perdida ou ganha.
Foto de capa: Hunters Race/Unsplash.
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Negro, nordestino e radicado na Austrália desde 2003. Tem Bacharelado em Digital Mídia & Escrita e atualmente cursa o Mestrado de Pesquisa, ambos pela Victoria University, em Melbourne. Guido é um Learning Designer, poeta e escritor. Seus artigos podem ser lidos na SBS voices, Cordite Poetry, Mantissa Poetry, Alma Preta Jornalismo, Guia Negro, A Voz Limpia, Peril Magazine, RightNow, Meanjin, Overland e Ascension Magazines. Guido participou de festivals como o Emerging Writers Festival & The Melbourne Writers Festival. É escritor contribuinte da Antologia Growing Up African in Australia, lançada na Austrália pela Black Inc. em 2019 e das Antologias Racism: Stories on Fear, Hate & Bigotry (Sweatshop, 2021), Resilience: Mascara Literary Review (Ultimo Press, 2022), Povo (Sweatshop, 2024) & Handbook of Critical Whiteness | Deconstructing Dominant Discourses Across Disciplines (Springer, 2023).