Você pode até não torcer para a Argentina, só não venha me dizer que é por causa do racismo
Pouco mais de 40 mil pessoas assistiram ao jogo da Copa do Mundo da FIFA no Estádio Sarriá, em Barcelona (Espanha), no dia 5 de julho de 1982. Naquele dia, a mais de nove mil quilômetros de distância, na cidade de Salvador (BA), minha mãe cozinhou espaguete pela primeira vez para mim. Lembro-me do gosto do molho de tomate, da maciez da massa e de saborear a famosa adaptação que Marco Polo fez há tantos séculos à velha receita chinesa.
– “Vamos ‘comer’ os italianos”, disse ela.
Nesse dia, aprendi algumas coisas: O nome Paolo Rossi (que marcou três vezes na partida – eliminando o Brasil), que macarrão é um prato gostoso e que perder dói. Perder realmente dói!
Este é o meu trauma mais antigo. Mais tarde, aprendi que sentir no estômago é literalmente como o corpo registra o sofrimento e a dor. Senti uma dor no estômago e, pela primeira vez, eu, um menino afro-brasileiro cada vez mais saudável, perdi o apetite.
O efeito, no entanto, foi o oposto, ao invés de me afastar, me apaixonei instantaneamente pelo esporte. Futebol tornou-se o relacionamento mais extenso de longo prazo da minha vida. Tão rápido quanto um casamento em Las Vegas, eu me casei com o esporte na hora.
Numa briga com uma ex-namorada uma vez e eu disse:
– “O futebol veio antes de você, e o futebol vai estar comigo, mesmo após a gente terminar”.
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Nós, eventualmente, terminamos o namoro e minha profecia foi assim cumprida. Apaixonei-me pela camisa amarela da seleção Canarinho. Na Copa do Mundo seguinte, em 1986 (o evento mundial acontece a cada quatro anos), eu estava totalmente viciado na febre verde e amarela.
Usar a amarelinha, me fazia me sentir mais brasileiro, embora eu sempre tenha preferido o segundo uniforme do Brasil: O azul. Estar em unisono com toda a nação era uma sensação maravilhosa.
Nas Copas do Mundo subsequentes (11 até agora), aquela camisa significara uma ruptura com o sentimento diário de não-cidadania que muitos brasileiros negros como eu costumavam sentir.
O futebol foi o mais próximo de uma religião que eu já segui. O transe de estar no meio da multidão dentro do estádio do Maracanã me fez transcender para um lugar onde, por 90 minutos, eu me sentia seguro. Eu me sentia bem-vindo, eu me sentia amado e eu me sentia necessário.
A sensação de inutilidade que o racismo e o estigma racial atribuem a um jovem negro brasileiro é terrível. Pular e vibrar sob o bumbo da torcida, uma vez por semana , dentro do templo do futebol era mágico. Uma experiência fora do corpo. Era divino!
Os afro-brasileiros inventaram o drible quando o racismo não nos permitia jogar. Anos depois, driblando a vida; mudei-me para a Austrália no início dos anos 2000.
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Em Melbourne, a distância física só reforçou meu amor pelo futebol. Ao tentar encontrar uma conexão com o esporte, tornei-me um torcedor do Melbourne Victory (um clube local) e, muitas vezes, voltei para o Brasil (ou Peru como em 2019 para final da Libertadores) para assistir às finais do meu time Flamengo sempre que possível e por qualquer meio necessário.
Como todo relacionamento, tivemos nossos momentos ruins; terminei com o futebol depois do traumático Alemanha 7×1 Brasil na Copa do Mundo de 2014. Gotas de lágrimas e chuva caíram naquele bar da Praia de Copacabana, onde o saudoso comentarista esportivo da SBS Australiana, o Les Murray (1945-2017), me consolou após aquele jogo da semifinal. Talvez, ouvir suas resenhas ao vivo tenha sido o único destaque daquela noite terrível.
Em 2015, meu relacionamento renasceu graças ao trio do MSN, Messi, Soares e Neymar, eu voltei a acreditar na magia.
No entanto, desde o golpe de Estado de 2016, quando a presidenta Dilma, 75, foi injustamente deposta, a camiseta amarela tornou-se o símbolo da extrema direita brasileira. Lentamente, a imagem da unidade tornou-se o símbolo da divisão, a marca do ódio.
As últimas eleições brasileiras foram extremamente dolorosas e divisórias. A estaca final no meu peito foi Neymar apoiando abertamente o presidente de extrema-direita Jair Bolsonaro, 67, há menos de uma semana no início da Copa do Mundo de 2022. A camisa, que já havia se tornado algo distante na minha vida; depois disso, virou uma antipatia visceral. Consequência: A beira da Copa do Mundo terminei com o futebol mais uma vez.
Enraivecido e arrasado porque o esporte que eu amava foi roubado de mim pelo Bolsonaro, pelo Ronaldo, Neymar e sua turma de companheiros de equipe que, vivendo fora da realidade, comeram ouro no almoço. Tudo isso enquanto o Brasil literalmente queimava como nação. Imperdoável e inesquecível!
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O jogador Messi, 35, e a equipe do Marrocos apareceram nessa Copa, cada um a sua maneira. Quando a esperança estava sangrando do meu corpo assim como a chuva em direção ao bueiro.
– “Por que você vai torcer para a Argentina?”, perguntou um amigo brasileiro.
– “Eu gosto do Messi”, respondi. Além disso, historicamente, o principal jogador Argentino da história foi Diego Maradona (1960-2020). Ele era conhecido como ‘El Negrito’ por sua origem humilde e sua herança indígena.
Claro, a Argentina é uma nação racista, mas também Marrocos e se formos pensar bem todas as nações, de uma forma ou de outra é. Para nós, que somos negros no Brasil – o país mais racista do mundo –, eu sinto que a dor (geralmente mais enfática nos brancos) que os brasileiros sentem contra os argentinos é porque eles chamam cada um de nós (brancos e negros) de macacos.
Acredito que se eles apenas insultassem os jogadores negros como macacos, os brasileiros brancos não se importariam tanto.
A Argentina conseguiu com suas políticas de eugenia dizimar a população escravizada e seus descendentes. Um verdadeiro holocausto da população afro-argentina – hoje restam apenas 3% de pessoas negras por lá. O Brasil não é inocente nisso. O pais falhou em seus planos de extermínio, mas a história mostra: Eles (as elites eugenistas do Brasil) tentaram. E sem dúvida, ainda seguem tentando nos exterminar.
O Marrocos oprime seu povo indígena, tentou ingressar na União Europeia e tem um enorme sentimento anti-negritude. A França não fica atrás, além de oprimir e tributar de forma sistemática e cruel suas velhas colônias ao redor do mundo; ainda como tem o fator xenofobia como disse certa vez o astro do futebol francês, o franco-argelino Karim Benzema, 34: “Se eu marcar, sou francês; se não fizer, sou árabe”.
Como todos sabem, governo de extrema-direita de Bolsonaro quebrou várias leis de Direitos Humanos. Nem por isso deixamos de torcer… (bem aqui na Austrália em muitos casos, o tratamento para com suas nações indígenas (aborígenes) é terrível. No meu caso, ao longo dos anos, para minha diversão temporária, fingi que não tinha racismo no Maracanã. Fechei os olhos diante da realidade para ver o Flamengo ou o Brasil jogar.
Por que não posso fazer isso mais uma vez?
Apesar do pensamento racional me dizer para torcer contra o ‘menino Ney’ e sua turma, fiquei triste quando o Brasil perdeu para a Croácia. No final, entendi que era para melhor. O Neymar, 30, não merecia estar no mesmo pódio onde Pelé, 82, já esteve.
Hoje penso diferente em relação as derrotas; ao longo dos anos, o futebol me ensinou que perder forma o caráter. Perder faz com que a vitória tenha um sabor melhor.
No futebol, perdi como torcedor e assistindo a Seleção brasileira na TV e em estádios ao redor do mundo. Nas poucas vezes em que saí vitorioso, as memorias estão gravadas no meu DNA, e me lembro dos mínimos detalhes do que aconteceu naqueles dias.
Então, neste domingo, 18, para a final da Copa do Mundo, vou me permitir apreciar ao esporte com o qual me casei há tantos anos. Vou apoiar Messi, 35, e Mbappé, 23, e desfrutar de um bom espetáculo porque, durante 90 minutos, me sentirei seguro, me sentirei bem-vindo. Vou me sentir amado, vou me sentir necessário.
Foto de capa: Juan Salamanca/Pexels.
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Negro, nordestino e radicado na Austrália desde 2003. Tem Bacharelado em Digital Mídia & Escrita e atualmente cursa o Mestrado de Pesquisa, ambos pela Victoria University, em Melbourne. Guido é um Learning Designer, poeta e escritor. Seus artigos podem ser lidos na SBS voices, Cordite Poetry, Mantissa Poetry, Alma Preta Jornalismo, Guia Negro, A Voz Limpia, Peril Magazine, RightNow, Meanjin, Overland e Ascension Magazines. Guido participou de festivals como o Emerging Writers Festival & The Melbourne Writers Festival. É escritor contribuinte da Antologia Growing Up African in Australia, lançada na Austrália pela Black Inc. em 2019 e das Antologias Racism: Stories on Fear, Hate & Bigotry (Sweatshop, 2021), Resilience: Mascara Literary Review (Ultimo Press, 2022), Povo (Sweatshop, 2024) & Handbook of Critical Whiteness | Deconstructing Dominant Discourses Across Disciplines (Springer, 2023).