O caso do meme com o homem negro em situação de rua e a espetacularização da violencia em forma de piada
Senti uma dificuldade imensa de elaborar algo mais simples e didático para falar desse evento recente envolvendo uma pessoa em situação de rua que virou motivo de piada nas redes sociais nas últimas semanas. O caso ocorreu na cidade de Planaltina (DF).
Em minha última aula falando sobre aspectos relacionados à saúde de pessoas em situação de rua, fiz questão de lembrar como a invisibilidade e vulnerabilização delas é relativa: apenas importa quando se torna interessante pra sociedade, como na demonstração da caridade cristã, doando brinquedos no Natal ou sopas à noite. Já não importa, por exemplo, quando o “medo” estereotipado impera e você não esconde o desconforto em estar perto dessas pessoas.
O evento recente envolvendo o homem negro em questão, que vive em situação de rua demonstra o ódio que se tem daqueles que não se encaixam no esperado do funcionamento social e acumulam pontinhos na estereotipação negativa. Afinal, temos: homem negro, em situação de rua, com discurso um tanto confuso (fora do que a sociedade entende como normal e logo atribui um CID psiquiátrico).
A mídia, perversa como sempre foi, contribui pro espetáculo e as redes, comovidas com a história focada na mulher branca, esquecem que ainda temos outro indivíduo em sofrimento numa escala muito maior de vulnerabilidade.
Mas ele é negro. Tá na rua. Não contribui economicamente, logo, sua figura não é útil. Por ser negro, estampa a figura do perigo, da sujidade, do nojo. De tudo aquilo que a sociedade perfeita tenta desviar o olhar.
É ele quem desperta o da pessoa que anda na rua e acredita que aquele homem existe para oferecer riscos à sua vida. Ele não entra na categoria (que me causa ânsia) do “mendigato”; aquela do homem em situação de rua, branco, socialmente tolerável, que é “tão bonito pra estar na rua…”. Ele faz você esconder a bolsa, faz o grupo de playboys o amarrarem no poste e tocar fogo. Ele leva chute dos policiais, leva cusparada na cara enquanto dorme na calçada.
“Mas a mulher está sendo exposta”. O primeiro ponto a se considerar é: assim como uma violência não descarta a outra, uma violência NÃO JUSTIFICA outra. O segundo: teríamos essa repercussão, atribuição de loucura e histeria à mulher caso o envolvimento fosse com qualquer outro homem que não o da história? Com um homem limpo, bem arrumado, penteado, com casa, emprego, branco…? Com um homem que não gera repulsa e nojo?
“Mas é só uma piada”. “É só um meme”. Essa história é engraçada pra quem? O meme ficou engraçado pra quem?
A piada e o riso que reforçam estereótipos violentos, pensamentos que contribuem para a humilhação social que AFETA COTIDIANAMENTE em vários âmbitos da vida (inclusive os da saúde física e mental); o dia a dia de quem está na rua refletem muito mais o que uma classe dominante, que produz as exclusões e é responsável pela manutenção das injustiças sociais, pensa e pretende manter enquanto status quo.
Em tempo, algumas observações:
*O uso de qualquer outro termo que não pessoa em situação de rua é extremamente ofensivo e desrespeita o que o movimento da população em situação de rua luta para mudar. Essas pessoas são como eu e você. São indivíduos complexos, cidadãos. Dignos de respeito e compreensão. Não vou me delongar nessa parte porque considero o mínimo do básico. Se você tem medo dessas pessoas, reavalie o olhar que você direciona para a sociedade que vive fora da sua bolha.
*Se você ainda consegue achar engraçado situações como essa, sugiro que veja o vídeo da Jana Viscardi (Instagram @janaisa), que você encontra no canal do YouTube sobre humoristas e piadas.
Foto de capa: Reprodução.
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Ouça o episódio #01 do Saúde Preta podcast – Por que falar sobre saúde da população negra?
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Rayssa Okoro (Ada Okoro – nome igbo) é médica formada pela Universidade Federal do Maranhão (UFMA), co-fundadora do Coletivo Negrex de estudantes e profissionais negres da medicina. Maranhense e nordestocêntrica. Filha de Raimunda, brasileira, e Samuel, nigeriano, igbo. Vive em constante processo de aprender a cuidar do nosso povo. Estuda questões relacionadas à saúde e subjetividades, principalmente o que se relaciona à saúde da população negra. Tem uma paixão especial pela intersecção desses temas com saúde mental e uso de álcool e drogas. Existe e resiste politicamente, exalta a beleza da subjetividade enquanto mulher preta, acredita que afeto pro povo preto é revolucionário e fala disso o tempo todo. Admira o movimento do corpo humano, alimentação e espiritualidade. É aprendiz de pole dancer e yogi nas horas vagas.