Um jovem vai até um rabino e diz: “Por favor, explique o Talmud para mim?”. “Muito bem”, responde o Rabino. “Mas, primeiro, vou lhe fazer uma pergunta. Se dois homens descem por uma chaminé e um sai sujo, e o outro sai limpo, qual deles se lava?”.
Não importa qual é a resposta que o jovem dará à pergunta. O rabino vai golpeá-lo como errado. Porque no Talmud (um livro com coleções de escritos que cobre a maioria dos aspectos da lei e tradição judaica) e na vida, existem muitas maneiras de ver o mundo. Este é o caso do livro mais recente da jornalista Isabek Wilkerson, 60; Casta: As origens de nosso mal-estar (2021).
Um dos primeiros autores, nos Estados Unidos, a falar sobre raça como uma construção social e como um problema de castas, foi o antropólogo Ashley Montagu (1905-1999), um judeu que escapou do processo nazista como refugiado nos Estados Unidos. Montagu escreveu em seu livro The Fallacy of Race: Men’s Most Dangerous Myth (1942): “O que realmente precisamos dizer é que o sistema de castas e os problemas que esse sistema de castas cria nos Estados Unidos da América”.
Segundo a ganhadora do Prêmio Pulitzer, Isabel Wilkerson, casta e raça não são sinônimos nem mutuamente exclusivos. “Eles podem e devem coexistir na mesma cultura e servem para reforçar uns aos outros”.
O que Wilkerson tenta argumentar é que o racismo é uma forma desatualizada de lidar com os problemas que os Afro-descendentes e outros negros e imigrantes não-brancos enfrentam nos Estados Unidos da América. Segundo ela, os americanos vivem dentro de um sistema de castas semelhante aos da Índia e semelhante ao imposto pelos alemães ao povo judeu entre a Primeira Guerra Mundial (1914-1918) e a Segunda Guerra Mundial (1939-1945).
Wilkerson divide o livro em sete partes. Na parte um Toxinas no permafrost e o calor aumentando ao redor, ela estabelece as bases para os conceitos científicos que serão discutidos posteriormente neste livro.
“O que os cientistas descobriram recentemente é que os terremotos… são frequentemente precedidos por interrupções catastróficas mais longas, lentas, ressoando em profundezas mais de 30 quilômetros abaixo de nós, profundas demais para serem sentidas e silenciosas demais para serem medidas. Apenas, recentemente, as circunstâncias nos forçaram… a buscar as agitações invisíveis do coração humano”.
Como a citação acima sugere, não se pode entender o aparente sem conhecer as questões abaixo da superfície que fervilham nas sociedades.
Na parte dois, intitulada As construções arbitrárias das divisões humanas, ela mergulha fundo na história eugênica da criação das raças humanas. Ela argumenta que o conceito de raça é historicamente relativamente novo para a humanidade, bem como completamente arbitrário. Wilkerson afirma que desde o início a ciência foi posta de lado em nome da supremacia branca e do eurocentrismo.
Por exemplo, o termo caucasiano foi criado porque um professor e antropólogo alemão chamado Johann Friedrich Blumenbach (1752-1840), que estava estudando crânios de todo o mundo, cunhou o termo. Ele escolheu o branco porque considerou o crânio da região do Cáucaso o mais belo espécime. A região do Cáucaso não fica na Europa exatamente. É uma região entre o Mar Negro e o Mar Cáspio. Hoje, é ocupada principalmente pela Armênia, Azerbaijão, Geórgia e sudoeste da Rússia.
Sobre Blumenbach, Isabel Wilkerson escreveu: “Então, ele deu ao grupo a que pertencia, os europeus, o mesmo nome da região que o tinha produzido [o crânio]. É assim que as pessoas agora identificadas como brancas receberam o nome científico, embora aleatório, de caucasianos”.
Wilkerson, em seguida, passa a discutir o status do grupo dominante na parte quatro do livro intitulada Tentáculos do castelo, no qual ela demonstra como alguns brancos americanos agem como se fossem parte de um grupo coletivo (casta). Apesar do fato de que eles não se beneficiam do privilégios de casta superior de qualquer forma.
Em seu livro Dying of Whiteness ou Morrendo de Braquitude (2019), o médico Jonathan Metzl, 56, conta a história de um motorista de táxi que diz uma historia que exemplifica esse fenômeno: “De jeito nenhum eu iria apoiar o Obamacare – um tipo de plano de saúde nos EUA, semelhante ao Sistema Único de Saúde (SUS) – ou me inscrever nele. Eu prefiro morrer”. E, alguns meses após dizer isso ao entrevistador, ele morreu. Ele acabou sucumbindo à doença e faleceu devido às complicações causadas por uma doença hepática.
Infelizmente, ele não tinha condições de tratar sua doença devido às restrições de tratamento médico nos EUA. Ainda de acordo com Metzl, as políticas de saúde restritivas provavelmente tiraram 4.599 vidas de negros entre os anos de 2011 a 2015 apenas no estado do Tennessee. Mas, durante o mesmo tempo, pode ter custado até 12.013 vidas de White Tennesseans (Tennesseans brancos), porque eles não podiam pagar os benefícios de saúde oferecidos gratuitamente pelo Obamacare. O Tennessee é um estado Vermelho (conservador) e votou consistentemente nos Republicanos.
O mundo sem CASTA: isso é possível?
O líder dalit indiano Bhimrao Ambedkar (1891-1956) escreveu: “Casta é uma noção; É um estado de espírito”. Essas noções não são feitas de tijolos ou construídas como uma parede ou um edifício. Raça e casta são conceitos abstratos. Eles habitam apenas no imaginário coletivo da humanidade e, como tal, podem ser reprogramados – podem ser reconstruídos.
Os americanos pagam um preço alto por seu sistema de castas e, consequentemente, como são um dos países mais importantes do planeta, nós pagamos esse preço também. A Casta de Wilkerson leva o leitor a uma jornada de autodescoberta. É impossível lê-lo e não sair do outro lado mais informado e ciente dos fundamentos e das consequências do sistema de castas na sociedade em que vivemos hoje.
Como afro-brasileiro, fui obrigado a refletir sobre a traumática herança deixada pelo tráfico transatlântico de escravizados para a humanidade como um todo. Podemos moldar nosso destino se aprendermos com nossa história e com nossos erros.
No início do livro, Isabel utiliza uma metáfora que tenta raciocinar com o leitor, apelando para sua (nossa) humanidade: “Se você for ao médico, ele não começará a nos tratar sem anotar nosso histórico hospitalar”. Seguindo esse princípio, é razoável concluir que nada pode ser feito nos Estados Unidos, no Brasil ou em qualquer outro lugar do planeta, sem compreender plenamente a história dos povos que habitam nessas terras. A História pode ajudar a elucidar de onde viemos, consequentemente, essa mesma história, se plenamente compreendida, pode nos mostrar para onde estamos indo.
Casta: As origens de nosso mal-estar. Um relato surpreendente e transformador de como estamos todos amarrados em um sistema de castas, do best-seller do NYT, autora ganhadora do Prêmio Pulitzer Isabel Wilkerson e da Penguin Books. O livro está disponível na maioria das livrarias brasileiras ou online.
Referências
Wilkerson, Isabel. 2021. Casta: As origens de nosso mal-estar. Editora Zahar.
“Um clássico instantâneo e provavelmente o mais importante livro americano de não ficção já publicado no século XXI.” – The New York Times.
“Magnífico. Profundo. Revelador. Sóbrio. Esperançoso.” – Oprah Winfrey.
“Uma ampla investigação sobre racismo, desigualdade institucional e injustiça. É um livro duro, que cala fundo, e não poderia ter chegado em um momento mais urgente.” – The Guardian.
Foto de capa: Unsplash.
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Negro, nordestino e radicado na Austrália desde 2003. Tem Bacharelado em Digital Mídia & Escrita e atualmente cursa o Mestrado de Pesquisa, ambos pela Victoria University, em Melbourne. Guido é um Learning Designer, poeta e escritor. Seus artigos podem ser lidos na SBS voices, Cordite Poetry, Mantissa Poetry, Alma Preta Jornalismo, Guia Negro, A Voz Limpia, Peril Magazine, RightNow, Meanjin, Overland e Ascension Magazines. Guido participou de festivals como o Emerging Writers Festival & The Melbourne Writers Festival. É escritor contribuinte da Antologia Growing Up African in Australia, lançada na Austrália pela Black Inc. em 2019 e das Antologias Racism: Stories on Fear, Hate & Bigotry (Sweatshop, 2021), Resilience: Mascara Literary Review (Ultimo Press, 2022), Povo (Sweatshop, 2024) & Handbook of Critical Whiteness | Deconstructing Dominant Discourses Across Disciplines (Springer, 2023).