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Como me percebi um homem preto assexual

Primeiramente, eu gostaria de dizer que, durante algum tempo, eu pensei se realmente tornaria público esse meu reconhecimento sobre minha sexualidade. Isso porque já tenho marcadores identitários e sociais contra-hegemônicos, no qual me colocam em um estado de cansaço e em um local difícil de remar contra uma maré social gigante. Sou um homem preto, gordo, rasta, macumbeiro, não-monogâmico e agora assexual… e, às vezes, fico cansado de toda essa resistência, sabe? Eu só queria existir.

Porém, a identidade assexual ela é um marcador importante na minha vida, e, ao escrever os meus textos, eu tenho sentido falta de fazer essa marcação política, pois ela influencia diretamente a posição através da qual leio o mundo e as relações. Não é à toa que tenho diversos textos falando sobre a hipersexualização do homem negro, pois é um tema que me atinge em um ponto sensível, justamente o da assexualidade.

Uma outra questão que me fez publicizar a minha identidade assexual é que ainda é um tema muito novo (inclusive pra mim), e talvez por isso, exista muita dúvida e desinformação sobre o assunto. Então, como eu não utilizaria esse espaço importante que tenho aqui no Site Negrê para informar melhor sobre o pouco do que sei e vivo? Quantos homens pretos como eu podem estar passando pelo mesmo processo de se sentir confuso, estranho e inapropriado como aconteceu comigo? Então por isso venho aqui dizer como me percebi um homem preto assexual.

A gota que transbordou o balde

Desde quando entrei em contato com o termo lá entre 2014 e 2015, o “fantasma” da assexualidade sempre esteve presente na minha história de alguma forma. Me lembro de ter ouvido o termo em uma discussão sobre sexualidade e gênero dentro do movimento estudantil. A partir daí, vira e mexe essa ideia me atravessava e eu apresentava questionamentos na minha análise: “Será que sou assexual?”, “Mas eu sinto tesão”, “Uma coisa tem a ver com a outra?”. Mas realmente o que me fez parar para olhar de forma aprofundada a essa questão foi por conta de uma situação em uma das minhas relações afetivo-amorosas.

Neste caso, a frequência sexual já tinha diminuído bastante e eu já não conseguia me sentir confortável em uma relação sexual. Os dias foram passando, a pessoa no qual me relacionava na época já estava percebendo essa falta de libido e veio me perguntar se estava acontecendo algo. Pronto, esse foi o momento que eu tive que tomar uma atitude mais responsável sobre esse assunto.

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E depois que o balde transborda, faz o quê?

Ainda sem jeito com a situação de ter sido perguntado se havia alguma questão para a perda de libido, eu falei com ela que poderia ser por conta de algumas coisas. Talvez uma falta de vontade por conta do contexto, pois estava passando por algumas questões pessoais, poderia ser também uma questão biológica, pois em uma época eu fiz um exame que apontou um nível baixo de testosterona. Ou eu poderia ser assexual, pois era algo que sempre me questionei, mas nunca tinha mergulhado a fundo no assunto.

Ao apresentar todas as possibilidades que achava que poderia ter relação com a libido baixa, me comprometi em mergulhar nessas questões e trabalhar o assunto em análise para poder dar uma resposta a esta situação (Porque talvez se dependesse só de mim, eu continuaria um bom tempo na resistência), e assim o fiz. Primeiro, eu quis investigar sobre a assexualidade, lembro que passei semanas lendo textos sobre o assunto, assistindo entrevistas, vídeos, documentários e trabalhando o tema em análise.

Cada vez que eu mergulhava no assunto, mais eu me via enquanto uma pessoa assexual. As experiências que eu ouvia de outras pessoas eram bem parecidas com as minhas, eu comecei a resgatar diversos momentos da minha história sexual e tudo foi se encaixando. Até que assistindo a um documentário no YouTube chamado “A área cinza: um documentário sobre a assexualidade”, caiu a minha ficha: sim, eu sou assexual. Na hora do reconhecimento, me veio muitos sentimentos, mas me lembro de três que vieram muito fortes depois da ficha ter caído.

Um desses sentimentos era um alívio muito grande; uma sensação de que não era o único que tinha diversos questionamentos sobre a sexualidade e o sexo a partir de um não-desejo, e também de que aquilo que eu sentia tinha um nome. Não só isso, era apenas uma outra forma de expressar a sexualidade, e mais, existiam mais pessoas e por isso não estava sozinho.

Um outro sentimento era o de preocupação, pois não sabia como a companheira iria lidar com essa informação, até porque ela não tinha obrigação de continuar a relação caso a falta/diminuição do desejo pelo sexo fosse inegociável, como é para muitas pessoas e está tudo bem. Então, por conta dessa descoberta seria necessário conversar com a pessoa que me relacionava na época, e ela poderia não querer continuar a construir a nossa relação amorosa juntos, eu tinha medo disso.

E o outro sentimento que lembro de sentir foi o de medo; medo de carregar mais um marcador dissidente, mais uma re-existência de ter que lidar com o contra-hegemônico, com o “anormal”. Eu ainda não me sentia preparado para esse turbilhão de sentimentos, mas assim continuei a elaborar isso de diversas formas, inclusive na análise e escrevendo textos.

Foto: Rodnae Productions/Pexels.

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O momento que falei para a companheira sobre minha assexualidade

Eu estava meio apreensivo, foi meio tenso, mas sabia que era necessário ser verdadeiro e transparente sobre a questão. Então, fui falando sobre a minha mais nova “descoberta” sobre mim, falei sobre experiências parecidas que ouvi e li a partir de outras pessoas assexuais, disse como na minha história sexual esse marcador sempre esteve ali e também contei sobre as conversas que tive com uma pessoa que era assumidamente assexual.

Primeiro, eu percebi que, por muitas vezes, a outra pessoas era quem iniciava a ação do ato sexual, e raramente acontecia o movimento oposto. Muitas vezes, a questão nem era gostar de sexo ou não, mas não conseguir desejar o ato, é como se eu não me visse ali. Também era notável que muitas pessoas falavam sobre o sexo como se fosse às mil maravilhas, e eu sempre pensava: “Está certo, sexo é até legal, mas nada incrível”. Além disso, eu me lembro que já evitei de sair com pessoas que eram muito explícitas na hora de falar sobre o desejo te ter uma relação sexual comigo.

Lembro que já fui para encontros preocupado: “Será que a pessoa vai querer transar? Tomara que não, o que é que eu vou fazer caso aconteça?”. Era bem angustiante para mim a situação. Inclusive eu lembro de estar conhecendo uma mulher e sempre quando a coisa começava a esquentar eu dava um jeito de sair pela tangente. E olha que eu nem percebia esse movimento, só fui compreender quando a pessoa falou comigo: “Não adianta fugir de mim não, viu? Eu ainda vou transar com você”. Depois desse dia, eu ficava suando frio quando a via; foi um processo complexo pra mim, já que eu sentia que estava sendo menos homem por conta disso (Maldita masculinidade colonial).

Voltando para a conversa com a companheira, foi isso, contei sobre tudo isso que me atravessou, e ela fez um lembrete importante. Contou que quando nos conhecemos eu já falava sobre uma libido rebaixada, a pouca frequência no sexo e como essa questão sempre era pauta nos meus relacionamentos amorosos. Foi então que percebi, que de forma inconsciente, acabava tocando nesse assunto quando conhecia alguns afetos e quase sempre era conversado sobre o desejo sexual ou a falta dele nas relações que construí.

Por fim, ela falou que estava disposta a continuar a relação, que ela sentia vontade, mas não era nada que não pudesse ser revisto, já que ela não via o sexo como prioridade ou algo tão importante em uma relação. Ali, eu não estava falando que não iríamos mais transar, eu estava nessa descoberta (e ainda estou) sobre as maneiras nas quais expresso a minha sexualidade e a relação com o sexo dentro da assexualidade.

Sim, pessoas assexuais podem ser restritas; que são aquelas que não sentem atração sexual independente de contexto, ocasião, condição ou situação. Ou aquelas que sentem atração sexual devido a algum contexto, ocasião, condição ou situação. A exemplo dos demissexuais, que só conseguem ter atração e praticar o ato sexual depois que desenvolvem algum vínculo afetivo mais íntimo com a outra pessoa. Inclusive, a cantora Iza recentemente relatou ser uma pessoa demissexual, e que achava que era uma besteira, mas que agora percebe que é algo real. É como ela se percebe hoje.

A assexualidade é como se fosse um termo guarda-chuva para identificar pessoas que não sentem ou sentem pouca atração sexual por outra pessoa, e existem várias formas de expressar a sexualidade dentro deste guarda-chuva. Eu tenho muita coisa ainda para falar sobre esse assunto, mas no momento é sobre isso, agora posso gritar ao mundo, que sim, sou assexual, por mais que isso me traga um medo também de ninguém querer se relacionar comigo ou coisa do tipo. Mas esse sou eu e não vou deixar de ser quem eu sou por ninguém.

Referências

Veja o documentário “A área cinza: um documentário sobre a assexualidade” aqui.

Foto de capa: Bandeira que representa a comunidade assexual/Freepik.

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