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Confiar é um privilégio

Em um quarto privativo com acesso aos canais da TV paga, internet e café da manhã no estilo buffet, há dez anos, nascia o meu primogênito em um hospital de classe média alta, em Melbourne (Austrália). Após o parto, os médicos o levaram ao berçário para que ele se fortalecesse, pois nascera com apenas dois quilos e meio. Por precaução, como é de praxe por aqui, os profissionais médicos decidiram mantê-lo sob vigilância no berçário até que ele ganhasse mais peso.

O parto foi natural e, enquanto sua mãe se recuperava no quarto ao lado, a equipe me encarregou da honra de cuidar do meu bebê em sua primeira noite neste mundo. Lembro que, após os médicos e enfermeiras saírem da sala, ele finalmente olhou em meus olhos e, para a minha surpresa, sorriu. Por muitos anos achei que eu tivesse imaginado essa cena. Será que eu criei essa memória? Pensava.

Recentemente, aprendi que bebês movem a cabeça logo após o nascimento e que também abrem os olhos para encarar a pessoa que os observa. Em poucas horas após o nascimento, recém-nascidos já orientam suas cabeças em direção à voz de seus pais. De fato, não demora muito para um bebê imitar as expressões dos pais ou responsáveis. 

Meu filho não estava necessariamente sorrindo para mim. Ele estava me imitando. Tentando se comunicar. Imagino que, naquele momento, eu estava sorrindo de orelha a orelha e ele estava apenas me copiando.

Meu filho no berçário (rindo pra mim?). Foto: Arquivo pessoal.

Graças ao nosso grande cérebro, nós, humanos, nascemos fisicamente prematuros e totalmente dependentes. Para sobreviver, sabemos instintivamente que precisamos ser amados o quanto antes. Devemos ser sociáveis com todos aqueles que nos rodeiam. 

Em 1976, quando nasci, 35% de todas as mortes no Brasil eram de crianças menores de cinco anos. 67% dessas mortes eram de bebês negros, como eu. Essas crianças nunca tiveram a chance de revidar, assim como eu tenho. 

Desde cedo, meus pais sabiam que tinham apenas uma missão: minha sobrevivência. Quando criança, lembro de minha mãe me explicando como as pessoas eram perigosas e como homens e mulheres poderiam me sequestrar. “Cuidado, se eles te pegarem, já era!”. Ela repetia, insistindo para que eu não confiasse em ninguém. 

Ao contrário do meu filho, nascido em um país desenvolvido, eu nunca tive espaço emocional para formar laços ou conexões profundas quando pequeno. Dentro desse cenário, e desesperados para dar uma chance ao seu primeiro filho, meus pais foram forçados a me privar da inocência desde cedo.

Em Sydney (Austrália), quando ele tinha seis meses. Foto: Arquivo pessoal.

O instinto natural de confiar nos outros e a necessidade arraigada de acreditar e colaborar com o próximo tiveram de ser esmagadas dentro de mim. Como afro-brasileiro, sou o efeito colateral de uma guerra contra os afrodescendentes que vem devastando o Brasil desde a chegada do primeiro navio negreiro, em 1539. Primeiro com pólvora e armas, e agora com o Neoliberalismo e a Necropolítica em grande escala. 

De acordo com o dicionário, genocídio é o assassinato deliberado de muitas pessoas de uma determinada nação ou grupo étnico com o objetivo de exterminar ou subjugar esse mesmo grupo. O Brasil iniciou um processo de eugenia semioficial desde 1888, logo após a abolição da última escravidão mundial.

Um holocausto não precisa ser direto; os sucessivos governos brasileiros, ao não investir deliberadamente em educação fundamental, saúde essencial ou saneamento básico, fez com que a população negra tivesse que se defender sozinha, resistindo à opressão e lutando entre si por farelos e migalhas para continuar existindo.

Enquanto isso, famílias de italianos, alemães, japoneses, portugueses, espanhóis, gregos, sírios e libaneses dentre outros, receberam incentivos sociais e subsídios econômicos para migrar para as grandes terras tupiniquins. O objetivo era simples: apagar nossos ancestrais negros e indígenas da história para, assim, transformar o Brasil num país branco. 

Minha mãe nunca disse que brancos fazem isso ou aquilo. Não era explícito. Eu simplesmente sabia o que ela estava dizendo. Olhando para trás, percebo que tínhamos uma espécie de código para falar sobre os brancos. Chamávamos de “eles” e nos referíamos ao que era “deles”. Aos 13 anos, toda vez que eu estava fora de casa, instintivamente eu sabia que “eles” poderiam me prender ou até me linchar. 

Mais de 200 pessoas sofrem linchamentos no Brasil a cada ano. A maioria pertence a pelo menos um desses grupos: negros, mulheres e LGBTQIA+. 

Meus pais foram as primeiras pessoas a me ensinar que aos olhos “dos outros”, a minha vida era menos valiosa. Acredito que essa seja uma das coisas mais cruéis sobre o racismo no Brasil. Lembro de minha mãe dizer: “Meu filho, melhor um covarde vivo do que um valente morto”, me instruindo a não reagir a provocações e atos racistas.

Esse é possivelmente o trauma psicológico mais violento infligido a mim. Hoje, percebo que isso deixou sequelas irreparáveis. Para me salvar de ser brutalmente assassinado como foi, por exemplo, Emmett Till (1941-1955), meus pais tiveram de remover meu senso de humanidade. Desde cedo, eu sabia que os benefícios oferecidos aos meus amigos brancos não estavam disponíveis para mim.

Ter baixa autoestima foi o que me permitiu sobreviver até a idade adulta. Acreditar que eu não era digno me deu perspectiva para tomar decisões difíceis. Isso me forçou a aprender a olhar as pessoas nos olhos. A prestar atenção nas intenções dos adultos e a utilizar meus instintos para escapar de situações perigosas.

Quando você terminar este artigo, um menino negro entre 15 e 29 anos será brutalmente assassinado no Brasil. País onde um negro dentro dessa faixa etária é morto a cada 23 minutos.

Eu não cresci no Brasil. Eu cresci apesar do Brasil. Eu cresci contra o Brasil.

A mortalidade infantil na Austrália, exceto nas comunidades aborígenes, é muito baixa. 146 mortes entre 100 mil crianças indígenas e 70 mortes entre 100 mil crianças não-indígenas. Ou seja, o privilégio de crescer livre e com a perspectiva de um futuro, que meu filho vivencia aqui na Austrália, nunca foi oferecido a mim.

Hoje, trabalho diariamente para manter a minha saúde mental, me esforçando para ser um adulto confiante, empático e emocionalmente maduro. No entanto, durante aqueles anos de formação, por não poder seguir meus instintos humanos mais naturais, cicatrizes se formaram. Talvez eu nunca seja capaz de curá-las.

Infelizmente, não acredito que eu seja capaz de reparar plenamente as neuroses, dismorfias, fobias e paranoias que se acumularam e foram necessárias para a minha sobrevivência.

Sofro com gatilhos emocionais e alguns tiques. Meu corpo dificilmente se desliga e ainda atua no sistema instintivo binário de lutar ou fugir. Como um adulto com algum controle sobre a minha vida, entendo que, hoje, esses hábitos são de pouca ou nenhuma utilidade. Por isso, tento mantê-los dormentes. No entanto, não tenho certeza se algum dia serei capaz de convencer minha amígdala de que está tudo bem e que ela pode abaixar a guarda. Na verdade, nem sei se posso fazê-lo até porque talvez minha vida dependa disso. 

Seria um privilégio, um dia, de poder confiar plenamente em outro humano; “como a palmeira confia no vento, como o vento confia no ar, como o ar confia no campo azul do céu”*.

*Trecho do poema de Thiago de Mello,”Os Estatutos do Homem”.

Foto de capa: Arquivo pessoal.

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